Tempos atrás, participei de uma performance muito comovente com mulheres incríveis. Os detalhes me escapam, já que foi há muito, mas a performance foi coordenada pela talentosa multiartista Annita Brusque.
De minha parte, em meus movimentos, decidi caracterizar o feminicídio. Desse modo, durante a atuação, pintava meu pescoço com o batom vermelho-sangue. Uma degola, suponhamos. Era frio, mas não sentíamos. Algumas de nós estávamos com poucas roupas, porque a interação com o público presente passava por emprestar nosso batom e permitir que nos pintassem.
A mim, me devolveram com um gesto que me serviu de interpretação. Pintaram meu rosto como uma guerreira, com marcas tribais. O vermelho do sangue que dá a força dos enfrentamentos necessários. Tenho raízes indígenas imprecisas, uma de minhas bisavós foi uma escravizada. Gosto de pensar na resistência que habita essa transmissão, para além dos caracteres raciais.
Desde então, ressignifiquei meu uso do batom vermelho. Sempre gostei, mas, muitas vezes, deixava de usá-lo pela associação facilitada com uma sensualidade vazia e objetalizante. Daquele momento em diante, entendi que o batom era uma lembrança do meu sangue em movimento, da vida pulsante nos lábios, do poder da palavra, da nossa criação, enfim, do direito à enunciação tantas vezes roubado.
Quando alguém diz que algo foi criado “pelo homem”, sendo que sempre estivemos em associação, faz sedimentar o pensamento de que mulheres não criam e não inventam. É uma degola, como a frase: “Por trás de todo grande homem, há uma grande mulher”, que nos retira protagonismo, como se fosse um elogio.
Esse apagamento se entranha em pequenos e grandes gestos do dia a dia. Vão formando um caldo de cultura que vai conformando todo o poder patriarcal. Desde esse ponto – dos usos da linguagem, passando pelos costumes de exclusão – dificilmente nos liberamos de acontecimentos hediondos direcionados às mulheres.
Honestamente, não creio que deixarão de nos matar, sem que antes deixem de nos matar na linguagem. É nosso papel ativo talhar as palavras na nossa direção, ressignificando o batom.
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Foto da Capa: Gerada por IA.