Foi impossível esquecer o episódio do batom vermelho na gola da camisa branca. Não foi na comédia pastelão, foi na realidade da jovem Marlise, de 20 anos. Até hoje, eu não consigo entender tamanha ingenuidade diante daquela situação. Quando aconteceu, o namoro durava um ano mais ou menos, mas o tempo pouco importava pois o sentimento era a certeza do felizes para sempre. Isso foi até chegar o fatídico dia do episódio da gola branca marcada no formato de boca com batom vermelho.
As cores intensas são elementos narrativos envolventes em qualquer enredo. É o caso da geleia de morango da Shakira. Mas, espera! Aos 45 anos Shakira come geleia e mantém a forma física impecável, isto sim deveria ser notícia em todos os sites de fofoca. Ela tem razão: o quadril não mente. “You know, my hips don´t lie”, já cantava a musa dos hits globais há décadas. Além do movimento dos quadris comunicarem a saúde física, também evocam o desejo. Gênia pop! O que Shakira não imagina que viveria era a eloquência da geleia. “You Know, my jam don´t lie”. A mexida no doce da diva pop também teve grande potencial de comunicação: abuso, desrespeito, esvaziamento, gelo, desenlace.
Os vermelhos do batom e da geleia remetem para a paixão, sentimento que cegava a jovem que fui aos 20 e poucos anos. Ela viu a gola manchada, mas não enxergou as evidências. O namorado da época argumentava que o batom era da mãe dele, que ela “estava louca” de pensar algo diferente. Ele havia recebido um carinhoso abraço da progenitora e casualmente o batom havia marcado a gola. Para completar, ele sugeriu “um tempo” até a jovem acalmar o “ciúme doentio”. Neste ponto, amigas e amigos alertavam para o comportamento “galinha” dele. “Ele não é para ti”, ela ouvia com frequência. O problema, obviamente, dizia ele, era que ela não sabia escolher as amizades e deveria mesmo era defendê-lo diante de acusações levianas. Óbvio, cara.
O papel de vítima é típico de personagens vilões que precisam manter a imagem de mocinho para se tornar acima de qualquer suspeita. Por que você não me defendeu? A obrigação do enlace afetivo é justamente chancelar a imagem pública conveniente. Imagina na TV! O relacionamento dos participantes do BBB 23, o Gabriel e Bruna Griphao, é acompanhado ao vivo, 24 horas por dia. Os comentários na primeira semana não foram favoráveis nem dentro, nem fora da casa. O apresentador Tadeu Schmidt fez um alerta para todo o elenco sobre o comportamento abusivo, com o objetivo de frear as rusgas e as ameaças entre os dois. Afinal, “vai levar umas cotoveladas na boca” não é exatamente uma manifestação carinhosa. A reação de Gabriel é típica do vilão: “Por que você não me defendeu quando o Tadeu falou? Tem de dizer que nós temos intimidade para isso”. Parar, pensar e refletir sobre o comportamento não foi cogitado, é preciso parecer ser um cara legal em um relacionamento amoroso bacana.
A relação de abuso psicológico, normalmente de homens em relação a mulheres, é a primeira etapa para a violência física e emocional. No Brasil, é uma doença social. A cada hora, 26 mulheres sofrem agressão física. Os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostram que houve um aumento de 0,8% de agressões por violência doméstica, 3,3% de ameaças e 4% de ligações de pedido de ajuda para o 190. Mas o dado de maior impacto é: 81,7% dos crimes de feminicídio foram cometidos por companheiros e ex-companheiros. Os sinais começam muito antes da violência física acontecer, então por que as mulheres não se afastam? Esta resposta eu deixo para o psicanalista Luciano Mattuella como sugestão de temática para a sua coluna aqui na Sler.
Talvez a maturidade permita um discernimento maior em relação ao outro, talvez nem a maturidade ensine o tempo certo de se afastar. Romper laços afetivos íntimos é desafiar a dor porque ela infalivelmente será sentida. A jovem Marlise de frente pro batom vermelho na gola acreditava no “felizes para sempre” porque assim ela aprendeu nos filmes românticos, nos livros, nas novelas. Ela deixou o batom vermelho para lá, entendeu que realmente poderia ter sido um abraço de mãe ou talvez de uma amiga, amiga mesmo, ela repetia para se convencer. Aos amigos e amigas, ela passou a defender o namorado: “Ele gosta de mim, não teria por que mentir, se ele quisesse estar com outra mulher, ele terminaria o namoro, mas não, ele quer ficar comigo”. O famoso me engano que eu gosto não durou muito tempo, seis meses depois e mais alguns episódios de abuso perdoados, foi ele quem decidiu acabar a relação. O abuso não terminou com o fim do namoro, nunca acaba, mas esta é outra questão para o divã da coluna do Mattuella.
A diferença entre o caso de abuso do batom vermelho, da geleia da Shakira e da ameaça de cotovelada na Bruna está na visibilidade. Shakira transformou a dor em música, Bruna em redesenho de estratégia no BBB 23 e a Marlise em aprendizado e insumo de texto. Mas nem todas as mulheres fecham as feridas, muitas aprendem a conviver com ela. Na vida íntima de milhares de mulheres os abusos são cotidianos. Pode acontecer de os papeis inveterem e o abuso partir de mulheres? Claro, mulheres, gays, trans, lésbicas. Para sofrer abuso basta estar em um relacionamento com uma pessoa abusiva, porém, sabemos que os homens cisgênero são a maioria dos abusadores.
Trazer à tona o comportamento de Gabriel e de Pique (ex de Shakira), com grande visibilidade midiática, tem uma função pedagógica, para que as mulheres percebam que elas não estão sozinhas, não são culpadas pela situação que vivem ou viveram e podem e devem se libertar de amarras que as fazem sofrer, antes que seja tarde. A visibilidade e o debate aberto em canal de TV e sites de internet sobre relações tóxicas potencializam mesmo é a transformação dos homens cisgênero, aqueles que estão em formação e sendo inseridos na cultura machista. Se o pensamento crítico diante destes episódios permitir a eles perceberem que há uma maneira diferente de ser e viver relações, um jeito mais saudável, leal e amistoso, haverá esperança. Não a ingênua ideia de “felizes para sempre”, mas a feliz perspectiva de “amigos para sempre”.