Liberdade. Liberdade de ser quem se é… ou de quem se quer ser… e aí mora a enganação da liberdade que tanto procuramos. Não pode existir liberdade estética real sem se colocar uma lupa sobre a estética racial. E esta lupa passa menos por quereres… liso, crespo ou trançado e mais por entender as motivações subliminares geradas pela pressão estética em um enquadramento de corpos e saberes.
É preciso descolonizar a beleza. E para traduzir o pensamento acadêmico para a tia Maria entender… é preciso parar de considerar como padrão a beleza do colonizador (branca, euro centrada). Simples assim… fomos educados a achar belo o que é branco. Porque esta é a lógica da dominação. Querer ser igual a quem tem o poder. A quem coloniza.
Vou entrar aqui num recorte sensível, a relação de nós pessoas negras com nossos cabelos.
Mas vou usar minha história… Quando eu era pequena, uma menina parda com cabelo afro sem cachos e volumosos, minha mãe fazia toda sorte de penteados para “ajeitar” meu cabelo. Domar o volume. Então eram coques, tranças longas… nunca, nunca o cabelo solto… afinal não era bonito, padrão… e poderia conotar sujeira, “relaxamento”.
Prende o cabelo… eu escondia os grampos, as borrachinhas… porque todo dia era aquela tortura de puxa, puxa, até ficar um picolézinho… Inclusive uma vizinha italiana disse a minha mãe: “Que linda esta criança. Parece um picolezinho!!” Risos para não chorar….
Então um belo dia minha mãe viu o Sítio do Pica Pau Amarelo, que tinha a Narizinho e seus cachinhos curtos brincando pelas telas do encantando seriado. Pronto… cortou meu cabelo. E é claro que não ficou igual ao do Narizinho… a referência do corte. Meu cabelo é um 3c/3b, ou seja, curto não forma cacho… é crespo.
A partir deste corte fatídico entrei no mundo do alisamento… Henné… todo santo mês, que deixava meu cabelo preto e um liso espetado… mas ao menos era o mais parecido de algo liso.
E assim foi esta jornada de luta com os cabelos: procedimentos e mais procedimentos em busca da técnica perfeita de alisamento e alongamento. Porque o cabelo longo também é um signo de padrão branco de beleza.
Sempre houve as vozes (inclusive de pessoas brancas) “por que tu alisas”? Tão bonito solto, volumoso, crespo… Mas eu não via isto em nenhum outdoor, comercial, revista ou nas novelas que eu acompanhava… E outra, para poder aceitar meu cabelo eu teria que aceitar minha verdade: ser uma pessoa negra. O que ainda iria acontecer depois de 40 anos desta relação sensível entre mim, meu cabelo, minha educação e a estrutura estética naturalizada no meu cotidiano.
Quando acionamos o debate sobre relações raciais, não podemos deixar de pensar que um dos seus elementos centrais é a imagem e a aparência. Como aspecto simbólico e locus das relações de poder, o campo da moda não deixaria de eleger um modelo que se pretende universal para a produção da beleza. Desde os mais antigos exemplos de artes visuais e design, aplaudidos como geniais na história que compulsoriamente estudamos, diversos padrões se fixaram contribuindo para as tentativas de uniformização das identidades e como parâmetro de excelência, onde predominam nomes e formas que representam, além da branquitude, outros recortes privilegiados de classe social, acessibilidade, silhueta etc.
Entendo que os traços fisionômicos ou o aparato corporal visível, pode não oferecer necessariamente a possibilidade de manipulação, em especial no que se refere às interpretações da nossa imagem como índice do nosso pertencimento, limitando – mas não eliminando – as possibilidades de interferência nas lentes impostas pelo racismo. Corpos existem e significam num contexto pré-definido e independentemente das nossas intencionalidades. Como pessoas negras, ainda não reconfiguramos as memórias de subalternidade elaboradas e ratificadas diariamente a partir do passado e do presente escravista e assimétrico do Brasil.
Por mais que possamos acionar a aparência como estratégia de luta, ainda temos muita mudança estrutural pendente e como aliada das outras estratégias de intervenção, venho me provocando a considerar a aparência como forma de materialização da reflexão sobre a importância da presença, buscando expressar o meu lugar de fala e meu posicionamento crítico diante do vocabulário da moda e suas estruturas.
Olho ao meu redor e percebo que a grande maioria da estética, mesmo a negra que usamos para nos apresentar cotidianamente, é de origem branca. Não seria diferente, pois como país que foi colonizado por Europa, isso é um fato. A provocação se faz quando pensamos que a origem é apenas um dado e que pode ser ressignificada com o uso, com a mudança de contexto ou como parte de outro projeto de existência ou de criação artivista.
Descolonizar nossos corpos também é celebrar nossa aparência, observo isso na maneira como dentre as meninas mais jovens um amplo vocabulário estético-identitário hoje é possível, como parte espontânea da construção individual e coletiva. Estimuladas por mudanças que as precederam, realizam um investimento na visualidade, modelando diferentes formas de resistência dentre a população negra e jovem, que recupera e reinterpreta os signos de negritude e desde muito cedo percebem o corpo como locus de disputa e representação de referências estéticas dissonantes da hegemonia.
Quando olho a capa da Donna de sábado passado com a atriz negra Aline Borges, a outra de Tenório no Pantanal, vejo refletida sua frase: Sou fruto da resistência. Chegarmos em horário nobre com nossos cabelos e corpos é ser fruto da resistência. E para terminar esta reflexão: meu ciclo de tortura capilar terminou há 3 anos. Sou uma mulher negra que fez transição assumindo meu crespo e minha negritude perante a vida.