No dia 16 de dezembro, na Livraria Miragem, participei do lançamento do livro “Mulheres Serranas”, a expressão literária de muitas escritoras “em uma união que ilumina até a mais fria noite de inverno de São Francisco de Paula”. Uma ousadia maravilhosa da Editora Escrita Serrana. Escrevi sobre minhas origens nos Campos de Cima da Serra, texto que reproduzo aqui para fechar o ano.
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Sou uma mulher serrana, criada por mulheres fortes e acolhedoras. O encantamento, a afinidade e o afeto pelos campos de cima da serra fazem parte da minha vida. Foi onde nasci, passei a infância, a adolescência, fiz as primeiras amizades e turbinei as asas para os primeiros voos. Tudo começou na vila chamada Jaquirana, onde moravam meus avós maternos, com quem fui criada. E se espalhou pela fazenda dos meus pais e avós paternos, perto de Cambará do Sul. As noites eram iluminadas pela luz de velas e lampiões. E para além das portas caseiras, lua, estrelas e vagalumes que rodopiavam e movimentavam o céu que eu, meus irmãos e primos ficávamos acompanhando fascinados até a hora de dormir.
O alvorecer dos dias era anunciado pelo canto dos galos no pátio, pelo mugir das vacas na mangueira e um que outro relinchar de cavalos. Enquanto os homens saíam para trabalhar nos campos e mangueiras, as mulheres, atentas, cuidavam dos afazeres domésticos e dos filhos. As estradas eram de barro e pó. Os rios eram caudalosos e alguns exibiam belas cascatas. As pontes de madeira, que possibilitavam as travessias, me inundavam de medo. Um ditado zumbia na minha cabeça, “quem mente cai na ponte”. E eu me perguntava se o medo vinha de mentiras infantis que já não lembrava.
Neste cenário, uma cidade de longa avenida, para onde meus avós se mudaram quando eu tinha uns 7, 8 anos, me encantou – São Francisco de Paula. A avenida atravessava o centro de uma ponta a outra e me pareceu mágica. Foi em São Chico, como todos chamam carinhosamente, que estudei no ginásio das freiras, vivi uma infância de muitas brincadeiras, descobertas, desafios e invenções, em uma convivência vertiginosa com as primas e os primos. Foi em São Chico que convive com meus irmãos, Mariza, Rui e a Marlene, que tinha nanismo como eu. Marlene e eu não fomos criadas juntas, mas nos tornamos parceiras incríveis, cheias de sonhos e projetos. Foi em São Chico que fomos ao cinema pela primeira vez. Foi em São Chico que ousamos criar um grupo de teatro.
Andávamos em bando. Íamos ao Lago São Bernardo para espiar o hotel Cavalinho Branco, na época abandonado e cheio de segredos que queríamos desvendar. Nossos olhos se espalhavam e se perdiam naquela paisagem que achávamos linda. Íamos ao Veraneio Hampel, outro espaço de natureza exuberante, pelo meio do mato, desbravando os caminhos sem medo. A natureza que se descortinava nessas andanças era acolhedora, tinha lá seus mistérios, e nos inspirava muito.
Foi em São Chico que tive os primeiros amigos fora do núcleo familiar. Foi em São Chico que acompanhei a chegada do homem à lua no Rebenque, um bar que adorávamos. Foi em São Chico que pulei meus primeiros carnavais no Clube Cruzeiro, vesti minha primeira fantasia – de baiana – e me descobri uma carnavalesca incrível que, mais tarde, foi atrás dos trios elétricos na Bahia. Foi em São Chico que ouvi as primeiras manifestações de preconceito, ainda sem entender a minha condição. E foi em São Chico que percebi que estava cercada de mulheres determinadas e sonhadoras.
Quanto terminei o ginásio, me preparei para estudar fora, descobrir outras paragens e encarar uma vida que não tinha ideia de como seria, mas estudar estava em primeiro plano. Fiz o ensino médio/Curso Clássico em Novo Hamburgo, no Colégio 25 de Julho. Foram três anos de desafios, amparada pelos tios Dilma e Plínio, que me acolheram. Depois, a família – pai, mãe e irmãos – que a gente chamava irônica e carinhosamente de “família buscapé”, foi morar em Porto Alegre e reuniu a prole. Fiz vestibular para Jornalismo na Unisinos, em São Leopoldo. E novos horizontes se abriram.
Em seguida veio o primeiro emprego, o primeiro salário, a primeira viagem de férias, a descoberta de novos amigos e um mundo instigante que eu queria desvendar. As responsabilidades sempre encaradas com seriedade em meio às festas, aos desatinos, aos confrontos inevitáveis pelo direito de ser, de ir e vir, com a minha não adequação, coragem e a ingenuidade tão comentada. O burburinho da vida por todos os lados na capital me estimulava. Teatro, cinema, livrarias e as bancas de revista onde descobri jornais alternativos que mostravam outras maneiras de ler o mundo e o cotidiano.
Mas como serrana convicta eu sempre voltava a São Chico. Lá estavam meus avós maternos e paternos, meus pais, minhas tias, a grande família que sempre estimulou o desejo de estudar e viajar que minha irmã Marlene e eu cultivamos desde crianças. O nanismo nunca foi um empecilho para a família. Pelo contrário, sempre nos apoiaram e incentivaram a nossa independência. Um estímulo que nos dava confiança e nos enchia de orgulho. E assim fomos ampliando os horizontes. Hoje o cenário é outro, mas as raízes permanecem. Vejo São Chico como uma cidade de beleza genuína que me faz bem. Gosto de andar pelas ruas, encontrar as pessoas, tomar café na casa de parentes ou em uma confeitaria. Sempre gostei de mostrar a cidade para os amigos de outros lugares, andar com eles pela avenida, visitar a Livraria Miragem, falar dos costumes locais, do aconchego em torno do fogão à lenha, do pinhão na chapa, do carreteiro de charque, do churrasco, das conversas sem pressa. Herança de uma família simples, que sempre recebeu nossos amigos de portas abertas, com atenção e carinho. Família que me deu o nome de Olinda, em homenagem a minha bisavó materna – Olinda Marlei Lopes Teixeira, mas acabei sendo chamada pelo apelido, Lelei, que gosto muito.
Hoje o que mais me emociona em São Chico é o investimento da comunidade na arte, no turismo e na cultura, sem abrir mão da autenticidade, assim como a valorização da história e do patrimônio do município. Ser uma mulher serrana que convive e respeita suas origens foi e é fundamental na minha trajetória pessoal e profissional, que virou tema do livro que escrevi – “E fomos ser gauche na vida”.
Foto da Capa: Ilustração da capa do livro Mulheres Serranas | Divulgação