Não se sabe exatamente onde nossa espécie surgiu. Foi muito provavelmente na África, berço de quase todos os seres do gênero Homo. Há cerca de 300 mil anos. Pode ter sido nas planícies altas do Quênia, ou na paisagem desolada da Etiópia. Ou talvez no deserto do Kalahari, na fronteira da Namíbia, onde os dados genéticos atuais apontam que viveu a fêmea da qual todos nós somos descendentes. A “Eva Mitocondrial”.
Talvez a melhor denominação para a nossa espécie fosse Homo atrichos (“homem sem pelo”), ou Homo megacephalus (“homem de cabeça grande”), duas boas descrições de nossas características físicas. Mas resolvemos nos chamar, sem nenhuma modéstia, de Homo sapiens, o “homem sábio”. Se consideramos o que estamos fazendo com o planeta, trata-se de um nome muito questionável. Somos inteligentes sim, mas sábios é um autoelogio agora indefensável.
Apesar de nossa inteligência e habilidade, durante mais de 200 mil anos fomos uma espécie que em pouco se diferenciava das outras. Vivíamos em grupos pequenos, dedicados à caça e à coleta, sem nenhum impacto no planeta, e nas demais espécies. Fabricávamos ferramentas rudimentares, tínhamos algumas estratégias de caça um pouco mais elaboradas que de outros animais. Mas não muito mais do que isso.
Até que, há cerca de 50 mil anos, algo extraordinário aconteceu. As ferramentas se tornaram mais variadas e confeccionadas com esmero, as técnicas de caçar e armazenar alimentos muito mais sofisticadas, apareceu a arte e, possivelmente, a religião (os humanos começaram a enterrar seus mortos).
Não foi nenhuma mudança no tamanho do cérebro, já que não há sinais de modificações na forma do crânio, ou em suas dimensões. Mas, ao que tudo indica, mudanças na estrutura interna do cérebro, que se tornou mais eficiente. Os humanos passaram a ser capazes de imaginar, tanto coisas que não existiam como projeções do futuro. Chama-se a isso de “a revolução cognitiva”.
Ali surgiu nossa capacidade de construir civilizações, assim como toda nossa angústia existencial!
No entanto, há 50 mil anos, a Terra ainda passava pelo final do Pleistoceno, uma época de grandes variações climáticas em que o avanço e o recuo das geleiras e as frequentes variações de temperatura e umidade forçavam os humanos a migrarem incessantemente, em busca de melhores condições para sobreviver.
A revolução cognitiva possibilitou ao sapiens se espalhar pela maior parte dos continentes e sobrepujar as outras espécies, inclusive outros humanos (pois havia outros então, como os Neandertais). Mas ainda éramos pouco relevantes em termos de planeta.
Então, há cerca de dez mil anos, o clima ficou mais estável. As geleiras recuaram e permaneceram mais fixas. O clima de todo o planeta se tornou mais ameno, e previsível. Os grupos humanos passaram então a se fixar nas regiões mais favoráveis. Essa nova época, caracterizada principalmente pela estabilidade climática, é denominada pelos cientistas de Holoceno.
Foi essa fixação das populações que permitiu a invenção da agricultura, a domesticação ampla de animais e o aparecimento de civilizações. Nada disso seria possível se as populações tivessem que estar em constante movimento.
A estabilidade climática que possibilitou que nossa espécie espalhasse civilizações por todo o planeta e chegasse ao ponto de desenvolvimento científico e tecnológico que temos hoje é chamada pelos cientistas de “o ótimo holocênico”. Ela está agora irremediavelmente ameaçada.
Os humanos modificam o planeta desde que apareceram as civilizações mais antigas. A mesopotâmia, planície que fica entre os rios Tigres e Eufrates, no atual Iraque (mesopotâmia significa, em grego, justamente “entre rios”), era uma região muito fértil quando surgiram as primeiras cidades (a cidade suméria de Uruk, ali localizada, teria sido a primeira cidade do mundo).
Hoje a região da mesopotâmia é um deserto. Foi totalmente devastada pelas atividades humanas já na antiguidade. Também em tempos antigos, a maior parte das florestas da Europa foi dizimada, principalmente para conversão em terras agrícolas. Não se sabe muito sobre as Américas pré-colombianas, mas em alguns lugares, como na atual Cidade do México, grandes cidades foram construídas aterrando-se charcos, lagos e dizimando florestas.
Mas as grandes mudanças começaram mesmo depois da revolução industrial, que se iniciou por volta dos anos 1750. E cresceram exponencialmente a partir de meados do século XX. Desmatamento, manejo de rios, destruição de habitats naturais, poluição química e plástica, modificação genética de animais e plantas, degradação dos oceanos e a crise de biodiversidade, com extinção em massa de espécies, estão impactando profundamente todos os ambientes do planeta.
E agora, com a aceleração das mudanças climáticas, estamos próximos do fim da estabilidade holocênica, com a humanidade encarando uma condição que os humanos não experimentaram em, pelo menos, 12 mil anos, quando terminou a última glaciação.
Por conta dos muitos impactos que a humanidade está tendo no planeta os cientistas estão propondo que estamos entrando numa nova época geológica, o Antropoceno (do grego anthropos, que significa humano, e ceno, que significa novo). Essa proposta ainda não foi formalmente aceita pelas principais sociedades geológicas do mundo, mas há uma boa chance de que o seja em breve.
Sua aceitação traria duas implicações principais:
- o Holoceno seria extremamente curto (a época anterior, o Pleistoceno, durou 2,5 milhões de anos) e, de certa forma, anômalo, por conta da grande estabilidade climática; e (2) a humanidade está de fato modificando profundamente o planeta.
Por outro lado, para se caracterizar uma nova época geológica, alguns critérios precisam ser atendidos, incluindo:
- a base das camadas depositadas nessa época precisa ser claramente definida;
- é preciso haver uma mudança significativa nos organismos que viviam nesse tempo; e
- deve haver espécies características, que não existiam antes.
De modo geral, na história geológica, mudanças climáticas marcantes também diferenciam as sucessivas épocas, até porque as mudanças acima são muitas vezes reflexos de variações no clima.
O Antropoceno já apresenta essas características?
Começando com sua base. Os cientistas estão propondo que sua base seja nos anos 1950, quando houve uma série de explosões nucleares que espalharam elementos radioativos por todo o planeta. Além disso, essa época marcou um enorme incremento no despejo de produtos químicos e outros dejetos industriais, que estão introduzindo na natureza uma série de elementos químicos artificiais cuja presença deve permanecer por milhões de anos.
Dá para imaginar um geólogo do futuro (não humano, provavelmente) examinando as rochas com um aparelho chamado cintilógrafo (que mede a intensidade de radiação) e marcando um ponto em cada o medidor dá um “salto”. Ele exclamaria: “Aqui está a base do Antropoceno”.
Quanto aos animais e plantas? Nós estamos muito próximos de causar a sexta maior extinção em massa da história do planeta. A extinção de algumas espécies é um fato normal em qualquer época. Mas as extinções em massa são caracterizadas pelo desaparecimento de milhões de espécies num curto tempo, numa taxa muito superior à normal.
A extinção em massa mais conhecida é a do final do Cretáceo, aquela que deu fim ao reinado dos dinossauros. Nela, 85% das espécies se extinguiram. Ela teria sido causada pelo impacto de um asteroide (há controvérsias). As outras quatro, no entanto, foram causadas por mudanças climáticas induzidas pela emissão de gases de efeito estufa por vulcões.
Assim, com a Sexta Extinção em andamento, já podemos prever que o registro fossilífero das camadas que se formarem em nossa época será muito diferente do que o do Holoceno.
Há ainda uma curiosidade aqui. Como eu disse acima, seria importante que também houvesse organismos característicos dessa época, e não apenas a extinção dos anteriores. Nesse contexto, há cientistas propondo que sejam… as galinhas! Segundo eles, as galinhas atuais não têm nada ver com o bicho original (a espécie se chama Gallus gallus), que é bem menor. Como estamos criando bilhões de galinhas em todo o mundo, fósseis dessas aves seriam característicos do Antropoceno!
Finalmente, as mudanças climáticas, afetando a distribuição das terras áridas, o regime dos rios e o nível do mar, entre outros fenômenos, certamente terão impactos marcantes no registro geológico, pois o tipo e distribuição dos sedimentos varia de acordo com esses processos.
O Antropoceno que está agora se descortinando será uma época de clima imprevisível e violento, grandes áreas tornadas inabitáveis para os humanos, ambientes profundamente degradados, empobrecimento brutal na biodiversidade (cujas consequências para nós ainda são pouco compreendidas) e poluição generalizada. Definitivamente, a chegada do Antropoceno não é uma coisa boa.
Se continuarmos com nossa inércia e não tomarmos imediatamente medidas mais enérgicas para conter os danos ao planeta, talvez o espectro do Antropoceno nos receba repetindo a frase da Divina Comédia, de Dante Alighieri: “Vós que entrais, abandonais toda a esperança”.
Dito isso, vamos ao Carnaval!
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