Sim, reconheço: era um tanto brasileiramente artificial aquele fascínio por um american way of life, na terceira semana de um retorno aos Estados Unidos. Mas estava apaixonado mesmo por aquela terra, espargindo adrenalina no seu território. Tudo parecia um road movie nas highways largas e seguras, costeando as cores indescritíveis da Califórnia. Eu já me sentia até mesmo capaz de descrevê-las, especialmente quando eram de um claro e escuro coruscante, sob a lua crescente. E o que dizer dos sanduíches devorados no caminho, sem economia de fritas crocantes, e da cerveja gelada, e do vinho encorpado (californiano), e dos lagos cristalinos, e da gente simples e simpática desejando um belo dia e recolhendo folhas secas, na frente de seus pátios com terra batida. Uma casa de Airbnb americana era o mais próximo da completude que eu havia visto até então. Nem o americano Whitman, que voltei a ler nos cafés da estrada, seria capaz de listar o que havia dentro delas. Exemplo ao léu: precisava lavar a roupa e lá estavam as máquinas de lavar e de secar, estreitando um pouco o corredor da sala aos quartos, mas inteiramente disponíveis, assim como o sabão e o amaciante à mostra nos armários, onde também havia bandeide, cotonete, gaze, mostarda, ketchup. No pátio arenoso, uma churrasqueira a gás, ladeada por muita lenha.
Mas eu havia chegado até ali no Malibu e, lá pelas tantas, a chave eletrônica do carro pifou. No meio do deserto, mas não desidealizei a América, pois ali perto avultou o primeiro mercado, aberto à noite inteira, onde se vendia a bateria, se trocava a bateria, have a nice night, sir. Mas foi comemorar a ressurreição da chave que o painel do Malibu clamou por uma troca imediata do óleo do motor. A locadora parecia mesmo a fim de me ferrar, mas isso elas fazem no mundo todo, incluindo os lugares de estradas perigosas, batatas murchas e casas incompletas. Quando parei na primeira oficina da Bear Avenue, em Big Bear Lake, havia um descompasso entre a aparência calorosa do homem no escritório e a sua atitude fria. Cabeludo, tatuado, colorido como as garçonetes das hamburguerias, mas, na hora de fechar o deal para trocar o óleo, garantiu que estavam sem horário para aquele dia, o que incluía o dia seguinte e a semana inteira.
Mister, não sei se me fiz explicar (I can repeat), eu preciso pegar a estrada, o Senhor não poderia fazer um encaixe? Olhou-me com cara de paisagem mexicana como se aquele pedido fosse mesmo kafkiano. O máximo que conseguiu, sem a menor empatia, sem o mínimo de flexibilidade, tão somente contaminado pelo meu desespero, foi encaminhar a uma segunda oficina que encaminhou a uma terceira que considerou igualmente absurdo trocar o óleo sem agendamento prévio. Appointment era uma senha que eu não tinha, e a minha formação cultural, tampouco. Não, as recepcionistas podiam sorrir com seus lábios preenchidos, chegando a sacudir as próteses mamárias, mas fazer um encaixe, quebrar um galho, dar um jeitinho nem pensar. Mais fácil encontrar cápsulas sortidas de café na prateleira debaixo da cozinha.
Arrisquei pifar o motor do Malibu para chegar em tempo ao aeroporto e não perder o voo de volta. E foi com um alívio enorme que aterrissei em Florianópolis, onde peguei o carro para mais umas seis horas de viagem. Quando o motor do velho Jeep roncou como se padecesse de uma bronquite avançada, eu cheguei a rir por dentro. Eu sabia que o próximo mecânico desconhecido daria um jeitinho, na hora mesmo. Foi o que fez o meu chapa, soldando aos berros o radiador, enquanto eu comia, perto dali, um à la minuta que não era de se jogar fora.
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