Tenho pensado muito sobre o mundo que vou deixar para os meus filhos. Mas não só para eles. Não adianta que meus guris tenham boa escola, comida na mesa e banho quente no final do dia. Quero isto para todo mundo.
E o que eu fico pensando é como tomar parte de algo que efetivamente mude este cenário distópico em que estamos vivendo nos últimos anos. Um contexto em que extremistas, racistas e negacionistas saem dos esgotos e defendem o ódio contra gente preta, pobre ou que mora longe. E o pior, fazem isso em voz alta e sem corar.
Confesso, com muita vergonha de mim mesmo, que faço muito menos do que gostaria. Sou daqueles que prega no deserto sobre a importância de sermos pessoas empáticas e éticas, mas, graças aos extremismos, minha bolha fica cada dia menor e, logo, minha audiência vem minguando. Além disso, consumo mais do que deveria e ajudo muito na emissão de carbono, graças a todas as viagens aéreas que minha profissão exige, só pra ficar nos exemplos mais óbvios.
E eis que, no meio dessa crise existencial, resolvo acompanhar o Festival de Cannes para me atualizar e arejar a cabeça com big ideas. Péssima ideia.
Redução no número de inscrições e redução no número de prêmios entregues, Brasil sem nenhum Grand Prix. E, mais do que nunca, muitos prêmios para campanhas voltadas ao ativismo ambiental e social, como The Lost Class, da Leo Burnett Chicago e o aplicativo que recria os monumentos e pontos históricos da Ucrânia para preservar o país destruído pela guerra ao menos em um ambiente virtual. Tudo mostrando que é possível fazer sua parte, usando as ferramentas da sua profissão.
Outro prêmio que me chamou muita atenção foi dado ao projeto “ReConstituição portuguesa”: um exercício de liberdade poética. Nele, um grupo formado por poetas e ilustradores (entre eles o amigo Diego Tórgo) utiliza a Constituição do Estado Novo para, através da técnica blackout poetry, falar sobre os valores da Revolução dos Cravos: humanidade, liberdade, justiça e igualdade.
Graças à correria do dia a dia, não tive tempo para ver todo o case do primeiro Grand Prix português, mas o que vi do livro me chamou tanta atenção que, na mesma hora, o comprei online. Quando o material chegou em casa, comecei a ler e chamei meus filhos – que passam o dia desenhando – para verem as ilustrações comigo.
Comentando com eles sobre como os artistas tinham selecionado palavras de um texto que representa a opressão para falar de libertação, meu filho mais novo me surpreendeu. Sem conhecer nada do projeto, apenas ligando o que estava vendo com o que aprendeu nas aulas de história, calmamente me explicou que todas as ilustrações que ocultavam o texto original eram em azul porque essa era a cor que a censura portuguesa usava para rasurar livros, músicas, textos jornalísticos e, que, por isso, esta era a cor da repressão.
Nesta hora, me dei conta que, mesmo que eu não esteja marchando pelo fim do aquecimento global, salvando a floresta ou criando grandes campanhas sobre estas e outras causas, talvez esteja fazendo minha parte ao criar pessoas melhores do que eu e prontas a me pressionar a aprender e sair da minha zona de conforto quando eu menos espero.