No livro “Planeta Hostil”, na introdução do capítulo sobre plásticos, escrevi que “há coisas que acontecem quando você fica mais velho”. No caso, eu me referia à estreia do programa “Fantástico”, da Rede Globo, e ao trecho da letra da música-tema que vinculava o plástico à modernidade: “da idade da pedra, ao homem de plástico…”.
Essa mesma frase serve para a lembrança de quando surgiram os primeiros carros movidos a etanol. Ficávamos fascinados ao sentir “aquele cheirinho de álcool” exalando do escapamento dos carros. O Brasil iniciou o programa Proálcool em 1975 em resposta à crise do petróleo. O programa teve como objetivos, entre outros, reduzir a dependência do petróleo importado e garantir o abastecimento de combustível.
O Proálcool foi um grande sucesso tecnológico e comercial, primeiro com grande parte da frota nacional de veículos sendo convertida em carros movidos a etanol e depois (ainda que já não diretamente ligado ao Proálcool) com o advento dos carros bicombustíveis, ou flex. O fato é que, com o Proálcool e os carros flex, o agronegócio e a indústria brasileira demonstraram uma grande capacidade de produção e adaptação, de modo a tornar os biocombustíveis uma opção real para a substituição de combustíveis fósseis.
Além da redução do uso de combustíveis fósseis, o programa teve vários outros impactos positivos, como:
(1) a melhoria das condições ambientais, principalmente nas cidades (a queima do etanol, apesar de gerar CO2, resulta na redução de diversos outros poluentes);
(2) o aumento da flexibilidade na produção de açúcar e álcool; e
(3) a geração de cerca de 1 milhão de empregos diretos e milhões de indiretos. Esses impactos vão continuar com o aumento da utilização de biocombustíveis no Brasil e no mundo.
Atualmente, o Brasil é um dos países com maior participação de energias renováveis na matriz energética, com 43,4% do total. A bioenergia da cana-de-açúcar responde por 18,1% do total. Mesmo na gasolina que utilizamos atualmente, são adicionados 27,5% de etanol anidro. E há planos para aumentar essa proporção para 35% até 2035. Outros países estão estudando adotar medidas semelhantes.
Com o advento da crise climática, os biocombustíveis têm sido considerados uma das melhores alternativas para reduzir o uso de combustíveis fósseis, pois resultariam em menor emissão de carbono e o uso de uma fonte de energia renovável. Há boas razões para se pensar assim.
Os dois principais argumentos para a sua utilização envolvem, primeiramente, o fato de que o carbono emitido em sua queima ter sido extraído da atmosfera pelas plantas ao crescerem. Dessa forma, ainda que a combustão do biocombustível no motor gere gases de efeito estufa (principalmente CO2), o carbono aí liberado foi extraído da atmosfera, de modo que o balanço final seria zero adição de carbono.
Segundo, porque trata de uma fonte renovável. Ou seja, a mesma área que fornece a matéria-prima para os biocombustíveis pode ser usada ad eternum (para sempre), desde que o solo seja conservado da maneira apropriada.
Esses argumentos estão, basicamente, corretos. Mas não incluem todas as fases de produção, distribuição e uso dos biocombustíveis, onde vários processos geram gases de efeito estufa e outros subprodutos nocivos ao meio ambiente. Para uma contabilidade correta da redução de carbono e do benefício ambiental propiciado pelos biocombustíveis, esses processos devem ser levados em consideração.
Comecemos examinando o que ocorre no campo. Inicialmente, a preparação do solo que, se for feita revolvendo a terra, libera o carbono dos seres vivos (principalmente plantas, insetos e microrganismos) mortos no processo. Depois, usam-se na agricultura muitos fertilizantes nitrogenados artificiais, cuja fabricação emite gases de efeito estufa. A produção global de amônia (NH3 – 180 milhões de toneladas/ano), que é a matéria-prima para fabricação dos fertilizantes artificiais (e é obtida a partir de hidrocarbonetos), consome 2% da energia e emite 1,8% dos gases de efeito estufa liberados no mundo (500 milhões de toneladas de CO2/ano).
Além disso, o uso dos fertilizantes nitrogenados no campo gera poluição e gases de efeito estufa, pois de todo o nitrogênio aplicado nas lavouras, apenas cerca de 50% são de fato absorvidos pelo solo. O resto acaba sendo levado pelas águas, onde vai poluir rios, lagos e até o mar (num processo denominado de eutrofização¹) ou reagir com o oxigênio do ar, formando o óxido nitroso (N2O), que é um gás de efeito estufa 300 vezes mais poderoso que o gás carbônico. Finalmente, após a colheita, nem toda a planta é aproveitada para produzir biocombustíveis. Parte, como o caule e as raízes, fica no solo, onde vai se decompor, gerando CO2.
O processo de fabricação de biocombustíveis também gera gases de efeito estufa, como o CO2. Seja como parte inerente à sua produção nas usinas (combustão em caldeiras e geradores), seja porque, em muitos casos, a energia usada nas usinas é obtida pela queima de combustíveis fósseis. Dados dos Estados Unidos indicam que, em 2022, as usinas de biocombustível daquele país emitiram 33 milhões de toneladas de gases de efeito estufa, o que é equivalente ao produzido por 8,5 usinas térmicas de carvão ou 27,5 refinarias de petróleo no mesmo período.
Embora a produção de etanol da cana-de-açúcar, que é a matéria-prima mais utilizada no Brasil, emita, em tese, menos gases de efeito estufa do que o etanol obtido do milho (que representa a maior proporção nos Estados Unidos), não há dados sobre as emissões das usinas brasileiras.
Outra questão grave relativa à produção de biocombustíveis é que os efluentes hídricos das usinas, que são lançados principalmente em rios e lagoas, contêm muitos poluentes. No caso do etanol produzido a partir da cana-de-açúcar o principal efluente é o vinhoto, um composto por água, matéria orgânica, minerais, açúcares e outros elementos que é muito mais poluente que o esgoto doméstico.
No caso do biodiesel, que, como veremos, é uma alternativa para substituir os combustíveis fósseis em veículos pesados, os efluentes são compostos por glicerina, álcool, catalisador e outros contaminantes. Tanto os efluentes das usinas de etanol quanto os das usinas de biodiesel deveriam ser submetidos a um rigoroso tratamento antes de seu descarte em rios e solos.
No entanto, para tratar os efluentes e adequar-se às legislações ambientais, os produtores enfrentam vários problemas operacionais e econômicos, o que resulta muitas vezes, principalmente em países sem uma fiscalização eficiente, no seu despejo sem tratamento diretamente nas águas naturais.
E há mais. Na maior parte do mundo, os biocombustíveis são transportados por caminhões (ou mesmo navios) que queimam combustíveis fósseis. Isto também ocorre com a gasolina e o diesel (e o petróleo que lhes serve de matéria-prima), mas, de qualquer maneira, esse transporte (que não é necessário no caso da eletricidade) representa uma emissão de gases de efeito estufa que tem que ser adicionada no balanço final do carbono relativo aos biocombustíveis.
Há também outro fator importante. Em muitos países, as áreas que são utilizadas para o plantio das matérias-primas para os biocombustíveis são resultantes do desmatamento de mata primária, que causa uma grande liberação de carbono. Ou, o que complica ainda mais a avaliação, as áreas usadas para o cultivo das matérias-primas para os biocombustíveis podem até ser áreas que antes eram utilizadas para a produção de alimentos. Mas estes, por outro lado, passam a ser cultivados em áreas desmatadas. No balanço final, é a mesma liberação de carbono, mas é bem mais difícil de computar.
E ainda há a questão da produção de alimentos. Embora o mundo produza alimentos suficientes para alimentar todos os seus habitantes, a distribuição da oferta ainda é muito irregular, de forma que, estima-se, cerca de 2 bilhões de pessoas vivem em condições de insegurança alimentar (ou seja, passam fome). Seremos 10 bilhões de habitantes em 2050, e a situação atual é de uma perda contínua de solos férteis, mesmo em países desenvolvidos. A menos que as técnicas agrícolas evoluam muito rapidamente, precisaremos de todos os solos férteis disponíveis para a produção de alimentos.
A contabilidade do carbono relativa a todas as fases, incluindo plantio, colheita, fabricação, distribuição e consumo de biocombustíveis, é muito difícil de ser feita e existem diferentes abordagens, com resultados muito distintos. Há pesquisadores que chegam a defender que o ganho pela adoção de biocombustíveis é muito pequeno (mesmo sem considerar a questão da produção de alimentos). No entanto, para a maioria dos estudiosos, ainda vale mais a pena optar-se pelos biocombustíveis do que usar combustíveis fósseis, pelo menos nos veículos cuja eletrificação é mais difícil.
E há muito que se pode fazer para reduzir a pegada de carbono dos biocombustíveis. Começando pelo campo, com o uso de técnicas que eliminem o revolvimento do solo e reduzam o uso de fertilizantes nitrogenados.
Nas usinas, o CO2 e outros gases de efeito estufa gerados no processo de produção podem ser capturados por filtros e utilizados por outras indústrias ou armazenados. É a mesma abordagem que deve ser aplicada em todas as indústrias que atualmente liberam carbono para a atmosfera.
Além disso, o tratamento dos efluentes hídricos é tecnicamente viável, e pode ser realizado em estações de tratamento de águas (ETAs) nas próprias usinas. Nesse caso, os principais desafios são econômicos e operacionais, o que implica na necessidade de incentivos e fiscalização, para garantir que não sejam despejados na natureza sem o devido tratamento.
De qualquer forma, é relevante pontuar que há alternativas para os biocombustíveis em todos os casos, embora estas sejam, atualmente, técnica e economicamente mais viáveis para os veículos mais leves.
Nos veículos leves, a solução, como vimos em artigo anterior, é a eletrificação.
Nos veículos mais pesados, que rodam longas distâncias, pode-se usar células de combustível, que produzem hidrogênio a partir de eletricidade. Mas o biodiesel, por ser mais barato e poder ser misturado ao diesel convencional, deve permanecer como a melhor alternativa por pelo menos uma ou duas décadas.
Em navios, células de combustível são viáveis, mas muito mais caras que o óleo combustível de origem fóssil atualmente utilizado. Nesse caso, energia nuclear é uma possibilidade, assim como navios que utilizem uma combinação da força dos ventos com eletricidade. Duas opções que são tecnicamente viáveis, mas ainda caras. Portanto, óleo biocombustível, possivelmente acoplado a células de combustível (ou seja, motores híbridos), talvez seja a alternativa mais atraente para navios por pelo menos algumas décadas, tratando-se de uma opção que é muito mais sustentável que o óleo combustível de origem fóssil utilizado atualmente.
No tocante à aviação, o uso dos SAFs (sigla em inglês para combustível sustentável de aviação), que são essencialmente biocombustíveis provindos de diferentes fontes, já representa uma opção muito mais sustentável que o atual querosene de aviação. Mas a médio e longo prazo (uma a duas décadas), o hidrogênio, seja via célula de combustível (para aviões menores) ou o uso direto como hidrogênio líquido (para os aviões maiores que precisem de mais autonomia), pode ser a melhor alternativa.
A conclusão de tudo isso é simples e direta. Biocombustíveis são uma solução que é, por um lado, temporária, mas por outro essencial para a transição energética. E o Brasil pode lucrar muito com isso. No entanto, depois de atingirem seu pico de utilização, provavelmente na década de 2040, devem ser progressivamente abandonados para que as terras onde suas matérias-primas são cultivadas sejam utilizadas para a produção de alimentos ou para a restauração dos ecossistemas originais. Esta é a melhor alternativa para nós e para o planeta.
Por isso, é bom o Brasil não apostar muitas fichas nos biocombustíveis. É um negócio que pode não perdurar muito tempo.
Notas:
Este é o quarto artigo da série em que eu discuto soluções e estratégias para o enfrentamento da crise ambiental global. O livro “Planeta Hostil”, assim como uma série de colunas publicadas na Sler, apresentam uma visão detalhada dos problemas cujas soluções são discutidas neste artigo, incluindo os processos de geração de gases de efeito estufa, a poluição causada pelos fertilizantes sintéticos e a perda de solos. O livro pode ser adquirido em livrarias físicas e online de todo o Brasil, no site da editora Matrix e em lojas online.
¹Veja mais detalhes sobre o processo de eutrofização e seus danos ambientais no livro “Planeta Hostil” ou na minha coluna na Sler de 1/4/2024.
Observação final: para vídeos e textos adicionais digite “planeta hostil marco moraes” no seu navegador. Confira também meu Instagram @marcomoraesciencia.
Marco Moraes é geólogo formado pela Universidade Federal da Bahia (UFBA/UFRGS) e Ph.D. pela Universidade de Wyoming (EUA). Construiu a maior parte de sua carreira profissional, de mais de 37 anos, como pesquisador do Centro de Pesquisa da Petrobras (CENPES). Desde 2017, quando deixou a vida corporativa, se dedica a estudar os problemas do planeta. É autor do livro "Planeta Hostil", lançado em 2024, pela editora Matrix.
Foto da Capa: Petrobras/Divulgação