Hoje te escrevo para que possamos, juntas, ressignificar uma fase da vida que é tão cara para o desenvolvimento infantil: a infância.
Minha escrita é da Fernanda adulta para a Fernanda criança. Quando eu falar nós, quero dizer ela e eu.
As memórias do que vivemos até os quatro anos foram muito especiais: brincávamos na rua, naquele tempo em que tudo era mato aqui na Vila, exploramos os espaços e buscávamos nos elementos da natureza os recursos para nossas comidinhas.
Panelinhas, gravetos, terra, água.
Banho no tanque de pedra.
Pedaladas na motoca e subidas na escadaria que levava ao terraço da casa. Lá não era o espaço mais seguro, mas era meu esconderijo, o lugar das “artes”.
Era uma criança muito feliz até os meus 4 anos.
Foi então que nossos pais, para garantirem o nosso desenvolvimento, nos colocaram em um outro lugar chamado de ESCOLA.
Que memórias uma criança preta, única na escola, única na sua turma de prézinho guardaria?
Quais eram as músicas, os cheiros e os afetos que ficaram em nossa memória?
Não me recordo! Mas tenho vagas lembranças que quero compartilhar com vocês ao longo deste texto.
Das lembranças da pré-escola ficaram poucas memórias ligadas à relação com os meus colegas e professores. Na verdade, as poucas lembranças me levam a propostas pedagógicas em que inviabilizavam a presença negra e as minhas características.
Recordo de uma proposta do Dia das Mães em que eu tinha que procurar imagens que remetessem à minha mãe em uma revista.
O ano era 1984 e com certeza não era comum pessoas negras estarem em revistas naquela época.
Desse período, eu carrego com muito afeto a lembrança de duas professoras negras que atuaram e permanecem até hoje em minha memória: a professora auxiliar da sala de aula (não me recordo seu nome, infelizmente!), uma mulher negra de pele retinta. Uma professora preta que brincava comigo e que fez desta relação as melhores memórias que tenho da pré-escola.
A segunda personagem é a já falecida Tia Cléo (me refiro à tia, pensando na década em que nos conhecemos e a forma como nos relacionamos com ela), professora de educação física uma mulher negra do Norte, que passou por muitas fases da minha vida, até o momento em que me tornei professora.
Muitas vezes as crianças negras não se veem em espaços escolares e a relação com profissionais negros acaba fazendo a diferença em suas vidas. A identificação, construção de laços, projeção e representatividade são marcadas através do currículo não oficial das escolas.
Hoje podemos tornar as infâncias de pessoas negras muito mais significativas e potentes através de uma intencionalidade pedagógica em que o conhecimento sobre a história e cultura afro-brasileira e indígena se faça presente na constituição de crianças pretas, pardas e não negras.
A escola pública “ainda” é o melhor lugar para desenvolvermos as potencialidades de nossas crianças negras através de um currículo democrático, multicultural e antirracista. Essa escola é possível? Não sabemos, mas vamos continuar sonhando com ela.
Para a criança preta que há em mim e em você, para as crianças pretas de nosso tempo, desejo um excelente ano letivo de 2024.
Fernanda Oliveira é pedagoga pela UFRGS, mãe, professora, fundadora do Projeto Social Oorun que atua na afrobetização de crianças negras, cofundadora do coletivo de Profes Pretas, gestora de Filosofia e Cultura na Odabá.
Foto da Capa: Priscila Martins/Divulgação