Não faz muito tempo, escutei a música Relicário, de Nando Reis. Enquanto ouvia “…O que está acontecendo? O mundo está ao contrário e ninguém reparou….”, fui lembrando das notícias daquela semana. Tudo acontecendo junto, misturado, confuso. Afinal, tem sido assim, sem muita mudança de tom ou emoção, vamos recebendo informações, tanto sobre os avanços da inteligência artificial e das novas descobertas científicas, quanto sobre as intolerâncias, violências, desigualdades sociais, negacionismo e desastres ecológicos.
Naquela mesma semana, nasceu meu sobrinho-neto, cara de anjo bochechudo. No grupo de WhatsApp da família, uma de minhas sobrinhas escreveu: “Amado!!! Bem-vindo a este mundo doido!…” Demorei um pouco para digerir o realismo contundente dessas “boas-vindas”. Parecia um pedido de desculpas pela doidice desse nosso mundo. Fiquei pensando se o mundo está mais doido agora ou sempre foi assim? O que temos para oferecer aos recém-chegados?
Recentemente, estava em viagem e lembrei desse “mundo doido”. Observei nos restaurantes, uma nova relação de alguns pais com seus bebês. Parece que delegavam quase toda a interação social dos pequenos a um celular ou tablet. Hipnotizadas pelos sons e imagens, essas crianças ficam vidradas na telinha. Nem os pais, nem a comida desviam seu olhar. Essas cenas me trouxeram lembranças de minha infância. Nessa perspectiva, achei difícil compreender qual será a consequência do uso das telinhas por crianças pequenas, quando substituem a interação verdadeira com os pais.
Lembrei de minha mãe e de sua especial habilidade de acolher e se conectar com as crianças. Ela gostava de cantar e contar estórias, algumas de sua própria autoria. Lembro da estória da menina da perna de ouro. Era uma menina que perdera a perna e o pai lhe deu uma perna de ouro em substituição (nunca entendi direito, mas tudo bem…). Uma mistura de medo e diversão. Eu também gostava do suspense que ela fazia ao contar “O Lobo e os sete cabritinhos”.
Durante a faculdade, conheci os contos de fadas, enredos bem mais elaborados, que oferecem possibilidades de sentidos para os conflitos infantis. Aprendi que cada família constrói um imaginário próprio para enfrentar o “mundo doido”. Segundo a psicanálise, as crianças se identificam e se apropriam singularmente das tradições, narrativas e ficções de seu meio. Isto pode ajudar a compreender e dar sentido a seus medos e angústias. A fantasia, muitas vezes, contribui para que se possa imaginar um lugar próprio no mundo. No caso das estórias de minha mãe, seu conteúdo nem sempre era o mais importante, mas sim disponibilidade e o respeito que ela passava ao transmiti-las. Esse foi seu maior legado.
Passaram-se vários dias e os versos da música que me inspiraram a escrever esse texto, reverberaram em meus pensamentos. Pela necessidade de revisar essa crônica, tive que atualizar minhas questões. Com a tragédia anunciada que se instalou no Rio Grande do Sul, devido as cheias e inundações, renovaram-se as minhas indagações sobre o tal “mundo doido”. O que dizer para as crianças? Como explicar a que ponto chegamos e como ajudá-las a elaborar suas emoções, medos e a falta de segurança em relação ao futuro?
Li textos de alguns profissionais da saúde e assisti na mídia algumas discussões sobre o que se deve abordar e como ajudar e acolher as crianças que estão vivenciando o trauma causado pela recente tragédia ambiental. Já surgiram publicações de livros de estórias que se propõem a ajudar nesse trabalho. Discute-se o que é melhor: falar diretamente sobre os fatos acontecidos, apenas escutar ou oferecer a fantasia e o lúdico para ajudá-las a elaborar tudo que passaram.
Em relação ao que estamos deixando para as nossas crianças, o mundo continua se mostrando difícil e desconhecido. Se teremos que abordar a dura realidade ou buscar os recursos que a fantasia nos oferece, ainda não sabemos muito bem. De minha parte, ainda não sei se continuo achando que o mundo está mais doido ou se encaro o que estão chamando de “novo normal”.
Jussara Kircher Lima é psicóloga. Após se aposentar do serviço público, tem se dedicado à escrita, em especial nos seus principais temas de interesse: literatura, psicologia e políticas públicas. E-mail: jussaraklima@gmail
Foto da Capa: Freepik AI-Generated
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