Tenho uma tese particular e de difícil comprovação, a de que o uso escancarado de memes por toda parte está meio que emburrecendo qualquer tipo de debate. E, claro, isso por si só já é um tópico a ser discutido nesta coluna, mas eu decidi que não vou discuti-lo hoje. É só o pretexto para falar de outra coisa. Há tempos circula como meme consagrado nas redes sociais uma brincadeira segundo a qual Os Simpsons preveem o futuro. Isso porque, em uma série de sátira social que já dura 36 temporadas, cada uma com duas dezenas de episódios em média, aqui e ali apareceram piadas ou situações que realmente se tornaram de fato realidade, como Donald Trump ter se tornado presidente dos Estados Unidos, a falência da Enron ou a eclosão de uma pandemia originária na Ásia.
Lembrando: embora tenha se tornado uma atração mais domesticada ao longo dos anos, Os Simpsons é uma sátira – e assim, seus roteiros são elaborados com um olho atento ao mundo real, exagerando com humor tendências e problemas que existem e que parecem convergir para o desastre. Se, como disse Borges, basta um orangotango imortal sofrendo graforreia para escrever sem querer uma biblioteca total, é bastante aceitável que uma sátira humorística à realidade acerte uma ou outra previsão ao longo de três décadas e 677 episódios, mas o apego ao Simpsons se justifica pela adesão ao meme, não pela surpresa da previsão em si. Porque se fosse assim, boa parte dos perfis de redes (como antes as infames e apedeutas reportagens do BuzzFeed) deveria estar comentando outras obras tão ou mais prescientes quanto, que em uma única narrativa de duas horas, acertaram tristemente na mosca com relação ao buraco em que a contemporaneidade está nos metendo (se quiserem ler esta frase com alguma malícia sexual, estão autorizados, embora não fosse minha intenção).
Sobre uma dessas obras recentes, proféticas, mas esquecidas, falei neste ano aqui mesmo na Sler, O congresso futurista, adaptação muito livre de Ari Folman para o romance de Stanislaw Lew (aqui). Mas, com a ascensão recente de Pablo Marçal nas pesquisas para São Paulo, bem como a possibilidade real de Donald Trump voltar à presidência nos Estados Unidos, me lembrei de outro filme que antecipou muito do que se viu na ascensão recente da extrema direita global, suas técnicas e seus métodos.
Documentário e zoeira
Bob Roberts é um filme de 1992 dirigido e protagonizado por Tim Robbins, com um elenco respeitável: Peter Gallagher, Giancarlo Esposito, Alan Rickman, John Cusack, Helen Hunt, David Straitharn, Susan Sarandon (na época esposa do ator/diretor) e até o escritor Gore Vidal, que na década de 1990 fez algumas participações no cinema vivendo essencialmente variações cinematográficas dele mesmo: um velho patrício americano símbolo da elite dominante de um status quo prestes a ruir ou que se mantém no lugar por mera inércia. Ele também reprisaria papéis semelhantes em Com mérito (1997), Conspiração (1997) e Gattaca (1997).
A estrutura de Bob Roberts costuma ser definida como a de um “mocumentário”, termo na minha opinião mal traduzido do inglês “mockumentary”, contração da palavra “documentary” com “mock” (sarcasmo, escárnio, zombaria, imitação intencionalmente ofensiva ou satírica). Um “mocumentário” é, portanto, um “documentário de zoeira”, uma obra que, usando o formato, a linguagem e os lugares-comuns e até mesmo a expectativa do público com relação ao gênero, para criar obras que retratam situações ficcionais nas quais o absurdo é a ferramenta da comédia. Afinal, sendo o formato documental contemplado por um pacto com a audiência que presume que os propósitos por trás dele são investigativos, jornalísticos, bem… documentais, para dizer o óbvio, é fácil para o público embarcar na narrativa como “real”, até ser sacudido pelas pistas da “zoeira”.
Um dos mais famosos e aclamados exemplos de “mockumentary” é This is… Spinal Tap, falso documentário de 1984 sobre uma fictícia banda de rock farofa que explora, “aumentando até 11” os clichês recorrentes envolvendo as bandas “Hair Metal” que faziam sucesso no período. Mais recentemente, o formato se tornou recorrente também em séries cômicas contemporâneas como The office ou Modern family, que alternam entrevistas dos personagens com momentos em que a câmera na mão, presente como uma testemunha, flagra uma cena – normalmente constrangedora. É da soma desses dois elementos que surge o humor, muitas vezes advindo do contraste entre o que os personagens dizem diretamente para a câmera (e, portanto, sua visão declarada dos acontecimentos) com aquilo que foi captado no momento (e que, o espectador pode ver, muitas vezes representa o contrário do que o personagem pensa ou diz).
Bob, o filme
Por essa definição, sim, Bob Roberts é um “documentário de zoeira”, mas eu considero que ele tem alguns elementos mais sutis – justamente por sua ambientação no teatro das aparências do mundo da política. O filme é um “documentário de campanha” sobre a candidatura, no início dos anos 1990, do fenômeno eleitoral Bob Roberts (o próprio Tim Robbins), jovem e carismático cantor folk ultraconservador que se lança na política como candidato ao senado pelo Estado da Pensilvânia. O documentário documenta a meteórica ascensão do artista ao estrelato político e o apelo de sua candidatura amparada no marketing da recuperação de um “orgulho americano” assentado nos mesmos pressupostos de tantas campanhas conservadoras: revalorização dos valores familiares, defesa de um capitalismo darwinista sem lugar para os perdedores, crença irrestrita no excepcionalismo do passado nacional e nostalgia por um período glorioso que se perdeu no presente, mas que precisa ser “recuperado”.
O filme intercala depoimentos de seus executivos de campanha (Peter Gallagher e Alan Rickman) que antes eram seus empresários artísticos, entrevistas com opositores políticos e críticos, cenas de entrevistas do candidato, trechos de comícios, de apresentações, de participações em programas de TV, imagens captadas durante a jornada de campanha. Em vários momentos, contudo, fica claro que toda a amabilidade da equipe de Roberts é encenada quando a filmagem dos poucos acontecimentos realmente espontâneos durante a campanha são seguidos pela exigência de algum dos membros de seu staff para que a câmera seja desligada.
Como a estrutura do filme tenta emular um documentário tradicional, também abrem-se espaços para vozes críticas. A certo momento da história, Roberts passa a ser acossado em suas entrevistas coletivas e aparições públicas por um jornalista independente chamado Bugs Raplin (Giancarlo Esposito), um sujeito desmazelado e que fala mil palavras por minuto, a maioria delas parecendo delírios conspiracionistas sem foco. Esta descrição se torna importante quando, mais tarde no filme, algo ocorre que, à medida que aumenta a devoção irracional dos eleitores por Roberts, o transforma em um símbolo praticamente invencível, pavimentando sua ascensão final a Washington.
O marketing da renovação
Roberts sobe meteoricamente nas pesquisas contra um moderado senador democrata considerado “ultrapassado” (Vidal) não porque representa uma novidade, mas porque se apresenta como uma. Parte de suas tentativas de vender a si mesmo como um “candidato revolucionário”, incluem apresentar a si mesmo como um indivíduo dinâmico, atlético (ele pratica esgrima) e arrojado (às vezes prefere viajar de moto à frente de seu ônibus de campanha). Roberts também é um músico que atrai multidões com seu folk reaça, como se encarnasse um “Bob Dylan de direita” (não à toa, não apenas o prenome, mas algumas cenas musicais de Roberts no filme são paródias diretas de momentos icônicos do cantor real, como o “clipe dos cartazes no beco” para Subterranean homesick blues).
As canções originais compostas para o filme pelo próprio Tim Robbins e por seu irmão David talvez sejam o elemento mais engraçado da produção, uma vez que seu discurso era tão abertamente agressivo para a época que entregava de cara a natureza “cômica” da coisa toda. Numa nota colateral, confesso uma profunda tristeza. Eu, que assisti esse filme no Cine ABC, quando foi lançado, me lembrava do tom algo escandaloso das canções, mas quando fui procurar as letras completas para apresentar uma neste artigo, percebi que hoje elas não só não escandalizam ninguém como são até amenas diante de alguns discursos de coachs e de políticos que andaram se popularizando, mostrando a deterioração da qualidade do debate público: “Alguns têm/ alguns não têm/, mas todos vão reclamar e reclamar e reclamar e reclamar e reclamar e reclamar // Alguns trabalham / Alguns simplesmente não/ Mas elas vão reclamar e reclamar e reclamar e reclamar e reclamar e reclamar // Bem assim: ‘É culpa da sociedade eu não ter um emprego/ É culpa da sociedade eu ser um vagabundo / Eu tenho um potencial que ninguém consegue ver / Me dê assistência social. Me deixe ser quem sou! // Ei, cara, você vive na Terra dos Livres / Ninguém vai te dar nada de mão beijada!”
A armadilha da forma
Bob Roberts também é, na minha opinião, uma das obras que melhor souberam responder à armadilha narrativa básica de se estruturar uma sátira em torno de um protagonista carismático, ainda que sinistro. É por isso que até hoje tem gente um tanto confusa com o tanto de maluco que acha que Homelander é o verdadeiro herói da série The boys: quando uma produção se debruça integralmente sobre um indivíduo e aproxima o público do seu ponto de vista, a tendência desse público é concordar ou empatizar com esse ponto de vista simplesmente porque ele é o protagonista. Bob Roberts, o filme, está plenamente consciente desse problema, e em sua primeira meia hora ou um pouco mais exagera essa apresentação do personagem: ele é de fato jovem, bem-apessoado, suas canções são engraçadas, seu carisma incendeia o público, enquanto isso as vozes contrárias parecem vir de pessoas esquisitas e pouco atraentes – a principal delas o jornalista Bugs Raplin, sempre descabelado, suado, olhos arregalados e falando de modo acelerado, sendo inconveniente ao abordar o candidato nas entrevistas.
À medida que a narrativa avança, contudo, começam a ser mais aparentes as maquinações de Bob e de sua equipe, bem como se desvenda uma conspiração que se desenrola com a apresentação, no discurso, de uma narrativa que nós, que estamos vendo o “documentário”, não reconhecemos como legítima. O final, que eu não vou contar, talvez seja bem menos sutil do que o filme se anunciava no início, mas penso que essa é uma atitude deliberada para que o público reconheça o perigo e a impostura que Roberts representa.
Os signos e a ressonância
E por que o filme é, para este articulista, tão presciente? Na época de seu lançamento no Brasil, essa foi uma produção que amealhou algum entusiasmo por aqui pelas coincidências que a narrativa na tela parecia desenvolver com a do então presidente “jovem, arrojado e dinâmico” Fernando Collor, que estava a ponto de sofrer o primeiro impeachment da nova democracia. Com a saída de Collor, talvez os paralelos com esse filme em particular tenham sumido da memória de muitos, mas acho que ele ainda dialoga melhor com o momento atual do que com aquele.
Roberts é um candidato de direita que cria um culto ao seu redor, apropriando-se de recursos performáticos até então utilizados de modo mais intenso pela esquerda. É um cantor folk, estilo até então ainda muito associado a uma visão artística crítica mais vinculada às angústias da classe trabalhadora e do “homem comum”. Apenas duas décadas antes, o folk ainda era um dos grandes ritmos que embalavam a luta pelos direitos civis, por exemplo. Em vez, contudo, de criticar o latifúndio ou a desumanização de uma raça, Roberts parece transformar em música os discursos de Ronald Reagan – e, como eu já mencionei, suas letras poderiam ter nascido no escritório de campanha de muitos dos candidatos que tivemos de 2016 para cá. Suas letras invectivas contra políticas sociais, contra o currículo escolar e os professores, contra a “leniência” do poder judiciário. Se esse filme fosse feito hoje, provavelmente Roberts seria um comediante com um podcast ou um coach com curso picareta (perdão pelo pleonasmo).
O candidato ficcional também se apresenta como um elemento “de fora do sistema” – na época, claramente havia uma tentativa de equiparar em certos termos a trajetória de Bob Roberts com a de um Ronald Reagan, também vindo do meio artístico. Mas na época a margem de manobra de figuras “de fora” dentro do rígido sistema bipartidário norte-americano era menor. Hoje, contudo, esse discurso parece mais presente do que nunca.
Assim, se você quiser estimar quais serão os passos dos próximos políticos ultraconservadores nos anos que virão, este é o filme para ver. Sua forma algo tortuosa, sua proposta estranha para o período e mesmo o absurdo que ele previa pareciam algo delirantes naquela época. Eu mesmo confesso que vi o filme duas vezes no cinema (fui uma vez sozinho, fui outra vez porque convidei uma guria para ir ao cinema e ela queria ver esse, então eu menti que não tinha visto) e na época demorou para ele ressoar plenamente comigo. À medida que os anos foram passando e a política foi mudando, cada vez mais ele voltava à memória.
Não o revi para este texto, escrevi de memória. Mas tenho a impressão de que, se eu o assistisse hoje, seria assaltado pela incômoda sensação de estar vendo um documentário a sério.
Que merda, hein?
Foto da Capa: Divulgação
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