Tenho sido bastante crítico ao escrever sobre o urbanismo porto-alegrense (RS) em particular e brasileiro em geral. A ideologia neoliberal se tornou hegemônica nas mentes políticas e midiáticas. O mercado e o capital viraram solução para todos problemas urbanos, da moradia popular à administração de nossos parques, e ditam as regras do planejamento da cidade. O poder público entregou os pontos, se declara, sem pudor, incompetente para administrar a cidade. Resta-lhe o papel obsequioso de agradar o grande capital: serve àqueles que investem em benefício próprio – é a regra do jogo –, enquanto uns e outros asseguram que o benefício também é nosso. Antes fosse!
Se essas são as linhas gerais de um panorama político e econômico nada favorável a uma vida urbana saudável, felizmente o mundo é feito de contradições e nas brechas do sistema neoliberal em que vivemos vão surgindo atitudes que trazem um pouco de saúde para nossas cidades. Se não com o grande capital, que faz Pontais, Golden Likes e Disneylândias gaudérias, com o médio e pequeno. Talvez por serem mais próximos de nós, há uma maior chance de compartilharem nossas preferências. Falo dos que não possuem jatinhos, não vivem em ilhas isoladas, mas andam de Uber, compram no mercado da esquina e investem seu dinheiro em pequenos e médios negócios.
No início dos anos 1989, escrevi um artigo (Porto Alegre, um Caso de Verticalização Controlada, Revista Projeto nº 122, São Paulo), que fez relativo sucesso no meio especializado, ressaltando as qualidades do Plano Diretor de Porto Alegre de 1979. Ele incentivava a proliferação das pequenas e médias construtoras da cidade em detrimento das de grande porte. Grandes construtoras nacionais não conseguiam se estabelecer aqui. Nem tentavam! Era muito rara, naquela época, a derrubada de cinco casas para formar um lote para um grande empreendimento. Não compensava. Os terrenos eram muito mais baratos porque neles se podia construir pouco.
Como era de se esperar, não demorou para que a legislação fosse mudada em favor do grande capital e as pequenas se recolherem do mercado…
É por isso que tenho acompanhado com entusiasmo o que tem acontecido em vários pontos de Porto Alegre. Em paralelo aos grandes empreendimentos que vão destruindo o parcelamento original da cidade, vemos uma atividade intensa de rearquitetura e reforma de antigas casas ou pequenos edifícios para transformá-los em espaços comerciais ou residenciais de outra natureza. São mercados/cafés, coworkings, espaços para feiras e cultura. Tudo junto ou separado. Nunca têm estacionamentos e estão voltados para o público que se cansou da vida pasteurizada dos shoppings e suas barulhentas praças de alimentação. São pessoas que gostam de sair caminhando, ou em transporte compartilhado, em direção às suas compras ou ao lazer.
Rearquitetura é quando se reconhece valores num edifício existente e se agregam novos valores de uso, associando à arquitetura do passado a do presente num trabalho de dupla autoria: a do arquiteto antigo se soma a do arquiteto contemporâneo. Os resultados, quando feito por arquiteto com sensibilidade aos bens do passado, têm sido excelentes. E o mais importante é que a contemporaneidade se instala no edifício sem que se perca a continuidade histórica. Não há ruptura. A intervenção mais conhecida, privada e de maior porte nesse sentido, foi o resultado do trabalho realizado pelos arquitetos Joseph Lutzenberger (antigo) e Goma Oficina (contemporâneo) no Vila Flores (foto da capa), no bairro Floresta.
Entre tantos outros bons exemplos, lembro o da Rua Fernandes Vieira, no Bom Fim. Um aproveitamento de antigos prédios, onde o público agora pode invadir o quarteirão para desfrutar de atividades gastronômicas, profissionais e residenciais, cria novas formas de usufruir antigas construções existentes sem jogar fora a memória do local. Pode-se dizer que está havendo ali uma mutação, uma transformação evolutiva do bairro adequada a sua escala e tradição. Um belo trabalho de rearquitetura idealizado pelo arquiteto Jairo Chotgues, também investidor do negócio, sobre obras de arquitetos, ou construtores, desconhecidos que não esconde a idade das edificações, pelo contrário, se orgulha dela.
Reforma já é um ato mais drástico, não procura valores para preservar (normalmente porque não há), mas não chega ao ponto da demolição e substituição da pré-existência. Tem um sentido ambiental importante porque aproveita a energia material e humana anteriormente despendida na medida do possível e do interesse do novo projeto. Se bem feita, contribui para permanência de valores ambientais do contexto onde está implantado. Em alguma medida, a ambiência urbana não sofre modificações drásticas como o caso da demolição e junção de terrenos que tem sido a norma agora.
A construção civil, em forma de serviço e não de indústria, beneficia pequenas empresas de arquitetura, de engenharia e de mão de obra, entre outras tantas. Há uma pulverização do capital.
De fato, são pequenas ilhas ou bolhas, como se diz – já vou dizendo antes que me acusem de otimismo fantasioso. Mas é fato que elas repercutem tendências que se veem em outras cidades do mundo. É claro que essa pulverização de negócios não vão fazer cócegas na jornada de concentração de capital tão bem revelada pelo economista francês Thomas Piketty. Mas é bom saber que ainda teremos espaços para chamar de cidade enquanto Porto Alegre submerge na inundação de capital imobiliário que inexplicavelmente constrói moradias que já não precisamos.