Eu era guria em Cândido Godói nos anos 80, quando lia nos jornais sobre os agitos no Encouraçado Butikin. Não há precisão nessa memória, podia ser na coluna social, na agenda de eventos, em alguma matéria mais longa, mas o fato é que aquele nome nas notícias mexia com o meu imaginário interiorano. Lá de longe, onde as festas aconteciam em clubes, embaladas por conjuntos de baile, o glamour daquela casa noturna da capital alimentava minha curiosidade. Quem seriam os frequentadores? Qual o figurino para usar num local desses? Quem é o próximo artista famoso a se apresentar?
Tinha também uma desorientação geográfica. Sem GPS, Google Maps e outros recursos de localização que temos hoje, queria saber onde ficava o tal endereço, avenida Independência, 936, que reunia essa gente toda nas noites de Porto Alegre. Independência pra mim seria crescer rápido e poder fazer coisas como conhecer aquele lugar. Tudo parecia bem difícil de realizar vivendo a 560 quilômetros de distância, e para quem a chance de morar na capital seria passar no vestibular. Levaria tempo ainda para satisfazer tantas curiosidades.
Adolescentes crescem, sonhos vão se dissipando, a vida, enfim, toma seu rumo. O Butikin de 1965, sabemos, deixou de existir, o casarão abrigou outros negócios, ficou fechado e, neste outubro de 2024, voltou a ser o Encouraçado Butikin. Já são 30 anos que a guria lá do início mora em Porto Alegre e foi num chuvoso início de noite que conheci o lugar das minhas divagações juvenis. Circulei curiosa pelas dependências históricas, de olho nos detalhes. As paredes descascadas com tijolos à mostra que marcaram seus gloriosos anos estão de volta, acompanhadas por vitrais, luzes de todo tipo, grades de ferro e cordas grossas remetendo ao filme russo que inspirou o nome da casa noturna, Encouraçado Potemkin, de 1925.
É a realização dos planos de um casal empreendedor, o médico Ricardo Niemiec e a psicóloga paulistana Sofia Refinetti, que mudou para o Rio Grande do Sul há 20 anos. No porão, que sempre foi palco de boa música, fica agora uma inédita sala de audição, inspirada em bares do Japão e de NY. Música aqui só com algum LP no toca-discos. A escadaria tem metal cobrindo os degraus até o segundo andar, onde fica a sala clássica com janelões para a Independência. É o espaço que vai receber às quintas-feiras um duelo de pianos, além de eventos privados. Na parte de trás da casa, o Clube 936 será destinado a festas e tem espaço para shows de bandas.
Na apresentação da novidade, Sofia lembrou a paixão dela e do marido pela música: “A gente resolveu trazer o Encouraçado como um templo de música e de cultura. Eu nunca quis ser dona de bar. Eu sou dona de um espaço cultural que tem uma história, uma alma e um significado”. Para quem não tem ideia do que significou para Porto Alegre, nos anos 60 e 70 o Butikin era referência social e cultural. O público viu aqui nomes como Dorival Caymmi, Vinícius de Moraes, Elizeth Cardoso, Nara Leão e Maria Bethânia. A cantora e dançarina americana Josephine Baker, também ativista dos direitos civis, foi uma estrela estrangeira que passou pelo Encouraçado. Personalidade icônica da cidade, o colunista Paulo Gasparotto aplaudiu de perto muitos deles. Agora, aos 87 anos, se envolveu com o projeto e participou da reabertura.
Como Gasparotto, muita gente embalou suas vidas por aqui. Marilda Canal e João Peró, que vivem entre Porto Alegre e Uruguaiana, circularam pelo Butikin durante todo o namoro. Ele, aliás, estreou aos 15 anos, numa programação para o público adolescente. Décadas depois, Peró veio conferir a nova cara de um velho conhecido. “O Teatro Leopoldina era aqui em frente e os artistas boêmios atravessavam a avenida para a casa mais badalada da capital. Alguns davam canja, outros, eram contratados para o show”, relembra o produtor rural.
Com muitos recursos tecnológicos, o Butikin foi reconstruído, garantindo uma acústica impecável, onde o som de um ambiente não interfere no outro. A criteriosa curadoria musical terá jazz, rock, pop e MPB. Na consultoria para a nova fase do negócio está Eduardo Alvares, amigo dos atuais empreendedores e filho de Dudu Alvares, que comandou a casa entre 1981 e 1991. A família dele segue proprietária do sobrado, um lugar cobiçado, mas que os Alvares preservam por convicção. “Uma construtora chegou a fazer proposta para comprar três casarões da Independência, o prédio do Butikin era um deles, mas meu pai nunca quis vender. Ele é daqueles românticos que sempre quis ver o Encouraçado de volta”, conta Eduardo.
O Encouraçado ganhou a marca do cartunista Ziraldo (sim, ele também passou por aqui). É uma sereia-marinheira nua, transformada em placa pelo escultor gaúcho Xico Stockinger. Fiz questão de posar com a sereia ao fundo, lembrando os conselhos da proprietária Sofia: “que a gente possa ser feliz, que se divirta, que possa trazer a alma e honrar a história deste lugar”, disse ela. Ao fim e ao cabo, o retorno do Encouraçado honra o passado e realiza sonhos. O do dono do imóvel, que quer proteger e conservar o sobrado; o do casal empreendedor, que desejou capitanear uma casa cultural com música de qualidade; e o meu, que tinha um filme na cabeça só com as histórias que lia sobre o Butikin.
Daniela Sallet é jornalista e documentarista.
Foto da Capa: Reprodução
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