Nas últimas semanas, as “bonecas reborn” — bonecas que parecem crianças de verdade, produzidas artesanalmente — ocuparam não apenas as prateleiras de colecionadores, mas o centro de um debate inflamado. Esse tema já foi explorado na série Servant (2019) e recentemente pelo documentário de Chico Barney: “Bebês Reborn não choram”. Enquanto redes sociais e Congresso discutem sua regulamentação, uma pergunta persiste: por que um objeto desperta tanta comoção, enquanto reformas estruturais — tributária, civil, fiscal — seguem à sombra, quase invisíveis?
Três deputados protocolaram projetos de lei na Câmara visando proibir o atendimento de bebês reborn em hospitais, oferecer suporte psicológico a quem desenvolve laços excessivos e punir quem os usa para burlar sistemas. Medidas pontuais, sim, mas que ecoam uma sociedade mais interessada em regular afetos do que em enfrentar desigualdades. Enquanto isso, notícias sensacionalistas sobre os bebês reborn viralizaram nas redes sociais. Uma influenciadora do Espírito Santo chegou a publicar um vídeo em que o boneco “Bento” foi internado num hospital e ela relata os procedimentos que teriam sido feitos por uma médica; depois confessou que tudo não passava de uma brincadeira. Circularam ainda boatos sobre batismo de um reborn por um padre – desmentido pelo próprio – e disputas judiciais pelo “direito de guarda” das bonecas. Um humorista mostrou mães matriculando bonecas na escola. Tudo isso é fake: não houve internações, batismos ou matrículas reais, apenas narrativas criadas para engajar audiência.
O fenômeno reborn, contudo, não é fruto do acaso. Nascido nos anos 1990 como arte, transformou-se em terapia, consolo para lutos não nomeados, vazios não preenchidos. Psicólogos apontam que esses objetos podem ser espelhos: refletem uma cultura que medicaliza a solidão, mas não oferece acolhimento real. Quando uma mulher manda fazer um bebê com a carinha do filho que perdeu ou paga R$ 9 mil para simular um parto, com direito a certidão de nascimento e cordão umbilical de mentira, o que ela está tentando dizer? Que falta, em nossa estrutura social, espaços para elaborar perdas.
Segundo a psicóloga Isabela Zeptks, especialista em maternidade e psicologia perinatal, o ato de maternar vai além de um evento biológico: envolve dimensão simbólica e psíquica. Para ela, o apego aos reborn pode refletir desejos de nutrição, elaboração de perdas (infertilidade ou luto gestacional), resgate da criança interior e busca por afeto, pertencimento e propósito. Em vez de rotular essas pessoas como “loucas” ou “infantis”, devemos entender que esses comportamentos apontam para carências emocionais profundas em nossa sociedade, que lida mal com a própria saúde emocional. Mais do que tratar as consequências, é urgente debater as causas dessa imaturidade afetiva na vida adulta – esse deveria ser o foco principal do Estado e da sociedade.
A mídia trata o tema como curiosidade, mas ele é sintoma. As cegonhas — artesãs que transformam silicone e vinil em bonecos hiper-realistas — vendem seus produtos a valores que variam de setecentos reais a nove mil e quinhentos. São artistas que estão fazendo sucesso até no exterior. Influenciadores encenam dramas fictícios para likes, enquanto o Estado falha em prover políticas de saúde emocional. Projetos que poderiam garantir creches, licença-maternidade estendida ou apoio ao luto gestacional sequer são pautados. E nós, espectadores, compartilhamos o vídeo do “bebê reborn na UTI”, mas não o texto sobre a reforma que tornará medicamentos mais caros.
Talvez as bonecas sejam mesmo uma cortina de fumaça. Não porque sejam irrelevantes, mas porque sua discussão revela nosso desvio de foco coletivo. Debater seu uso é legítimo; transformá-las no único debate é perigoso. Enquanto nos perguntamos se um objeto merece certidão de nascimento, deixamos de questionar: que país é esse que precisa de bonecas para preencher vazios que políticas públicas deveriam ocupar?
Referências:
- Bebês reborn não choram - Documentário de Chico Barney sobre a cultura reborn
- Informoney: O que é um bebê reborn? Entenda a polêmica que tem crescido nas redes sociais.
- Diário do Nordeste: Com bom humor, padre influenciador nega celebrações religiosas para bonecas 'reborn'
- Blog do Moisés Mendes: Bebê reborn não terá atendimento em Vitória.
- CNN Brasil: Bebês reborn: especialistas avaliam disputas por guarda e direitos
- Folha SP: Após viralizarem, mulheres defendem ter bebês reborn como hobby: 'Não somos doidas'
- Série Servant (2019): disponível na Apple TV.
Todos os textos de Luis Felipe Nascimento estão AQUI.
Foto da Capa: Reprodução