Porto Alegre, minha cidade natal. O ano: 1943 ou 44, por aí. Eu tinha uns oito anos de idade, e de certos acontecimentos de então até hoje me recordo, com carinho e sorrio.
A 2ª Grande Guerra seguia firme, na Europa e na Ásia. Nós torcíamos pelos Aliados, contra os Nazistas e os Amarelos. Colecionávamos os cartões Asas da Vitória, que vinham em barrinhas de chocolate, com todos os modelos de aviões de combate, multicoloridos: o Tigre Voador, da Inglaterra, era o mais admirado, com seu bico pintado como boca aberta de tubarão, o que na época passava por tigre; era assustador e poderoso. E também figurinhas dos grandes heróis e líderes, generais e políticos; a mais difícil, odiado objeto de desejo de todo guri da época, era a do Togo — só o nome já nos deixava apreensivos —, o primeiro ministro japonês, um inimigo cruel, im pi e do so!
A capital do valoroso Estado do Rio Grande do Sul, terra de gaúcho, da bombacha e chimarrão, também participava do esforço de guerra que o país solicitara: os carros circulavam movidos a gasogênio, enorme fornalha instalada no para-choque traseiro e mala, substituindo a gasolina, necessária para a guerra; havia a campanha do alumínio: caminhões passavam pelas ruas e a gente jogava panelas, bandejas e outros utensílios domésticos para, diziam, serem derretidos e utilizados na confecção de armas para os heroicos combatentes; havia também caminhões para receber pacotes de cigarros, que seriam enviados para os nossos “pracinhas”, que, de volta do front, relataram ter recebido somente marcas como Odalisca e Aurora — os mata-ratos da época —, embora a população contribuísse com Hollywood, o fino de então: mistérios de guerra…
Nas praias — Capão da Canoa, Tramandaí —, sempre havia quem visse, durante a noite, um submarino alemão emitindo sinais luminosos para algum “quinta coluna”, os espiões de então; sempre alguém desconfiava de algum vizinho, se alemão. À noite, periodicamente, aconteciam exercícios emocionantes de blackout: a cidade inteira desligava as luzes, escuro total, ensaio para proteção contra-ataques aéreos. A gurizada aproveitava para ir para a cama dos pais, onde era mais seguro e quentinho; a sirene tocava, e assim voltava a luz, retomando a normalidade dos tempos de paz — nada havia então online, nem em tempo real; minha prima queria, porque queria, sair à rua para “ver” o blackout…
A vida era boa, na Porto Alegre da minha infância: frequentar a escola na Redenção, brincar na rua — na Venâncio Aires e na Santa Terezinha, onde eu brigava bastante com o (já então gordinho) filho de seu Érico, o escritor ícone do bairro e da cidade. Nos fins de semana, íamos ao Bom Fim, onde morava o resto da família: tios, e primos, e primas, de todas as idades e chatices, que brigavam entre si — por variados motivos e até sem motivo algum, afinal, éramos uma família… Bem legal, como eu diria hoje, voltando a frequentá-los, aqui, na lembrança.
Nessa época, começou a se desenhar o gosto por cinema. Meu pai era, entre as várias atividades com as quais não parava quieto, um dos proprietários do Cine Baltimore — o enorme (pelo menos assim me parecia, à época) cinema do bairro, ao qual, por ser filho do dono, eu tinha acesso de graça; e, por isso mesmo, muitos amigos.
O saguão era grande, muitas luzes, espelhos, cartazes das próximas atrações e uma bombonière com mil produtos, entre balas, chocolates e chicletes, enfim, um delírio. O filho do dono ajudava atrás do balcão, e a todo instante caía alguma balinha no chão que, claro, não ficava bem colocar à venda outra vez, pelo que ia para o bolso, com a cumplicidade do baleiro.
Duas entradas laterais levavam à plateia, ampla, o alto teto abobadado. E o mais notável, único na época: os camarotes para seis pessoas, suspensos nas paredes laterais e nos fundos, para espetáculos teatrais ou recitais. Pois é, o Baltimore tinha um palco, um espaço monumental e mágico, um mundo de fantasia, viagens e novidades quando, no escuro do cinema, o foco de luz vindo da cabine de projeção nos arrebatava e conduzia, sem limites nem fronteiras.
Nada, nem uma ou duas ratazanas, que insistiam em driblar a desratização e colidir com os pés dos espectadores, podia deslustrar aquele encantamento. Nem as brigas nas matinês, com os guris comuns querendo, a todo custo entrar no camarote onde o filho do dono e seus comparsas assistiam ao filme, fazendo questão de mostrar o privilégio que lhes era dado. Até que chegasse o lanterninha a coisa ficava feia, mas depois acalmava, assim que o “mocinho” aparecia na tela.
Eram seriados de ação e aventura, filmes em episódios, feitos para passar um por vez antes do filme principal durante a semana, mas que, não se sabe por que, em Porto Alegre, passavam todos de uma vez, em sessão única, repetindo as últimas cenas de cada episódio ao iniciar-se o seguinte: um filme com soluços. Inesquecíveis, as matinês do Baltimore.
— Eu quero! — gritei. Quem não haveria de querer ir ao cinema à noite, coisa de gente grande?!
— Ele já é um homenzinho — argumentava o pai, para uma mãe reticente.
— Não sei se é próprio, é uma criança. Ainda mais para ver esse filme — dizia ela.
— Já está na hora de começar a ver coisas mais sérias — insistia o pai, sabendo que a opinião dele prevaleceria, como sempre. E assim foi decidido:
— Mas eu vou também, não vou deixar esse menino sozinho, de jeito nenhum — impôs a mãe.
Vitória! Ir ao cinema à noite, e para ver um filme proibido: KING KONG!
A sessão começou pondo fim à ansiedade, com o tradicional noticiário cinematográfico — com meses de atraso em relação aos eventos reais, e mesmo assim, ao som de trombetas, intitulado “Atualidades Cinematográficas” — seguido do trailer da próxima atração. E, finalmente, o esperado filme: KING KONG.
Só então foi possível sentar na cadeira, não mais ficar agachado atrás do peitoril do camarote para driblar o fiscal da Prefeitura, sempre em busca de um desrespeitador da lei e da ordem, para multar o dono do cinema; ou levar algum…
O filme transcorria de acordo com as altas expectativas, os olhos arregalados, o coração apertado. A mãe, superprotetora, sentada ao lado, preocupada com os efeitos danosos da iminente aparição do monstro, queria, a todo custo, evitar que o seu guri, — o “homenzinho” do pai apressado —, levasse algum susto prejudicial — intuitivamente, já que, àquela época, o comboio do Dr. Freud ainda não chegara a Porto Alegre.
Bem, às vezes as coisas não funcionam como o esperado. Minha iídiche mame não poderia imaginar o susto e o terror provocados por ela mesma quando, no primeiro grande close da carantonha do gorilão — no mesmo instante, parecia ensaiado — tampou os olhos do filho, para que ele não visse, não se assustasse. Nunca ficou sabendo do devastador efeito da repentina enorme mão agarrar-lhe o rosto — que susto, quase fez nas calças —, tudo ficou escuro e aqueles urros e berros assustadores, terror puro: o coração só não lhe saiu pela boca porque havia uma misteriosa mão (do KING?) impedindo.
No dia seguinte, tive que inventar algumas para contar aos guris o que não havia visto. Mas valeram as emoções do primeiro cinema à noite: da cumplicidade de meu pai e a certeza de ter sempre ao lado a minha mãe, mesmo pagando mico em filme de gorila.
O terror cinematográfico ficou gravado por todos esses anos: a nova versão colorida da era tecnológica, cheia de efeitos especiais, despertou nada mais que a curiosidade e um certo sorriso desdenhoso:
— “Não sabem de nada! Não sabem o que é um KING KONG!”
A nova versão nunca mais foi vista, mas a original, em preto e branco, essa, sim, não dá pra perder.
Jacob B. Goldemberg é arquiteto e professor. Já publicou os seguintes livros: Arquitetura: Espaço-Vida (1978), Arquitetura, Escritos (1998), O Essencial do Livro dos Livros – Contocrônicas, umas tantas (Ebook - Amazon) e Sobre Judeus, Hebreus e um certo Jesus (2024).
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