O colunista da Sler, Carlos André Moreira, jornalista e escritor, completou 50 anos. Para marcar a data, presenteou seus leitores com uma espécie de Vade Mecum literário. São 50 títulos e breves comentários de obras que ajudaram a moldar sua trajetória e forma de ver o mundo. O Vade Mecum é uma antologia de preceitos e informações importantes para consulta na formação de um indivíduo. Muito usados pelos estudantes e profissionais do Direito, há também os relacionados à Medicina, Farmácia, Veterinária. A expressão latina pode ser traduzida por “vai comigo”. Mais do que uma ordem, é um convite.
Ella Berthoud e Susan Elderkin se conheceram na Universidade de Cambridge, no Reino Unido, quando estudantes de literatura. Tornaram-se amigas e começaram a indicar romances uma para outra, sempre que uma delas “adoecia”, seja por um coração partido ou uma incerteza acadêmica ou profissional. Continuaram recomendando livros a amigos e familiares por muitos anos e, em 2007, quando o filósofo suíço Alain de Botton, também colega da universidade, falava em iniciar a Escola da Vida, elas lhe apresentaram a ideia de uma clínica de biblioterapia. A biblioterapia, se é que existia, tendia a basear-se num contexto mais de motivação, com ênfase em livros de autoajuda. Mas a proposta agora era a ficção como tratamento, porque ela proporciona aos leitores uma experiência transformacional.
Em 2013, a dupla lançou “The Novel Cure: An A-Z of Literary Remedies” escrito no estilo de um dicionário médico e combinando doenças com sugestões de leitura. Farmácia Literária (Verus Editora), no Brasil. Elas se inspiraram no método já preconizado pelos gregos antigos. Numa inscrição acima da entrada de uma biblioteca em Tebas havia o aviso de aquele era um lugar de cura para a alma. Cabe lembrar também Sigmund Freud que, no final do século XIX, valia-se da literatura para as suas sessões de psicanálise; e, após a Primeira Guerra Mundial, soldados traumatizados recebiam estímulos de leitura ao retornar do front.
Biblioterapia é um termo muito amplo para a antiga prática de incentivar a leitura para efeito terapêutico. O primeiro uso do termo é atribuído a um bem-humorado artigo de 1916 publicado no The Atlantic Monthly, “A Literary Clinic”. Nele, o autor descreve o encontro com um “instituto bibliopático” administrado por um personagem chamado Bagster, no porão de sua igreja, de onde dispensa recomendações de leitura com valor curativo. – “A biblioterapia é … uma nova ciência” – explica Bagster. – “Um livro pode ser um estimulante, um sedativo, um irritante ou um soporífero. A questão é que isso deve fazer alguma coisa com você, e você deve saber o que é. Um livro pode ter a natureza de um xarope calmante ou pode ter a natureza de um emplastro de mostarda”.
Para leitores ávidos que se automedicaram com ótimos livros durante toda a vida, não é surpresa que a leitura possa ser boa para a saúde e para o relacionamento com outras pessoas. Novas pesquisas sobre os efeitos da leitura no cérebro tornam isso melhor explicado. Desde a descoberta, em meados da década de 1990, dos “neurônios-espelho” – neurônios que são estimulados em nossos cérebros tanto quando realizamos uma ação quanto quando vemos uma ação realizada por outra pessoa – a neurociência da empatia tornou-se mais clara. Estudos baseados na análise de imagens cerebrais de ressonância magnética demonstram que, quando as pessoas leem sobre uma experiência, elas exibem estimulação nas mesmas regiões neurológicas que quando elas próprias passam por essa experiência. Utilizamos as mesmas redes cerebrais quando lemos histórias e quando tentamos adivinhar os sentimentos de outra pessoa. Isso melhora a capacidade de colocar-se no lugar do outro, de ter mais tolerância e respeito.
Hoje, a biblioterapia assume diversas formas, desde cursos de literatura para presidiários até círculos de leitura para idosos que sofrem de demência. Às vezes, pode significar simplesmente sessões individuais ou em grupo para leitores que desejam reencontrar o prazer dos livros.
Outro colunista da Sler, o tradutor, poeta e escritor Pedro Gonzaga também é reconhecido pelo generoso hábito de indicar bons remédios. Numa das suas crónicas de “Buenos Aires, Hora:Zero” ele encomenda um bálsamo para caso extremo: “Quando chegar a minha hora, Tainá já sabe que quero levar nas mãos uma edição refinada das obras completas de Kaváfis”. A encomenda nos serve também de recomendação.
Mais ou menos com esse espírito de arrumar a mala para a viagem, a escritora britânica Virgínia Woolf antecipava: “Sonho por vezes que, quando o dia do juízo chegar e os grandes conquistadores, advogados e estadistas vierem receber as suas recompensas – coroas, louros, nomes gravados indelevelmente em mármore imperecível -, o Todo Poderoso se voltará para São Pedro e dirá, não sem uma certa inveja, quando nos vir chegar com os nossos livros debaixo dos braços: – Olhai, estes não precisam de recompensa. Nada temos para lhes dar. Eles amaram a leitura”.
Num tempo em que as drogarias tomam esquinas e o meio de cada quadra de nossas cidades, devemos lembrar do poder benéfico de livros e boas histórias. Certamente é mais saudável citar Shakespeare, em Titus Andronicus: “Venha e escolha de toda a minha biblioteca / E assim iluda a tua tristeza…”
Foto da Capa: Ella Berthoud e Susan Elderkin / Divulgação
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