Em algum momento da vida, as biografias me atravessam… algo alcoviteiro ou fofoqueiro habita em mim, querer saber da vida dos outros? Talvez. Era um exercício e aqui me permito uns segundos de nostalgia, vendo a vida passar ou passando pela vida, daqui dos meus olhos, ao mirar e observar quem me cercava, eu desenhava presentes, existências, percalços. Como uma criadora que organiza as criaturas as quais cria, ali, sentada no banco de cor azul com assentos coloridinhos, eu via as pessoas e para cada uma, construía uma história.
Partimos, então, deste lugar de observadora/criadora para o meu despertar em biografias, para falar de Ana Delvey (Inventando Ana – série na Netflix), de Bernie Madoff (Série “O Golpista de Wall Street”, na Netflix) da raça, de investimentos e do ego.
A raça, aqui, como ferramenta. A partir da sua branquitude e do que ela permite, porque quando estamos falando da “infinita” branquitude, em que não há restrições sobre a sua permissão de existir e, por consequência, de obter a qualquer custo o que se deseja. O ego, aqui, também como ferramenta. A partir do seu ego e do que ele possibilita, porque não há nada que restrinja ou limite o desejo, o Ego que Freud[1] dissecava: “Esse ego ideal é agora o alvo do amor de si mesmo (self-love) desfrutado na infância pelo ego real. O narcisismo do indivíduo surge deslocado em direção a esse novo ego ideal, o qual, como o ego infantil, se acha possuído de toda perfeição de valor”.
As histórias de ambos você encontra em séries produzidas na Netflix, a partir de biografias escritas e que mantenho neste texto os nomes utilizados na série.
E como eu, desenhando uma realidade para estranhos, ambos tiveram a mesma capacidade, tão verossímil, de uma imaginação/desejo, todavia sobre si, que de uma lógica, óbvia e evidente mentira, de um mundo irreal e paralelo, como se virtual, passa-se ao real.
Ambos sem formação acadêmica em alguma escola superior diferenciada, ambos mentem, ambos dizem o que os outros querem ouvir, ambos sustentam uma realidade com palavras, ambos não têm qualquer pudor nem receio de prometer irrealidades.
Ambos saquearam milhões, Bernie, bilhões.
Ambos brancos.
E aqui não estou usando o verbo arrecadar, apesar de ter sido esse o utilizado quando o suposto modelo de negócio dos dois é trazido e descrito, estou usando saquear. Sentiram falta da etimologia, pois, aí vamos nós. Arrecadar, do latim recapitāre/recoger, obter o que se deseja; alcançar, conseguir, granjear e saquear, do Latim sacare, “tirar a posse de”.
Ana Delvey e Bernie Madoff, na linha temporal do seu empreendimento, foram muitas vezes questionados sobre os seus investimentos e sobre as propostas de investimentos e, sim, este texto também é sobre isso…
Apesar de um mercado desconfiado, apesar de um mercado distante, apesar de uma área complexa aos mais simples seres humanos, apesar de estar a léguas de distância de quem tem os olhos nos vencimentos dos boletos, te aventura e coloca no Google: “Em economia, em linhas gerais, investimento significa a aplicação de capital com a expectativa de um benefício futuro. O investimento produtivo se realiza quando a taxa de lucro sobre o capital supera ou é pelo menos igual à taxa de juros ou quando os lucros são maiores ou iguais ao capital investido.”
Alinhado sobre o que é investimento, alguns mantras básicos a gente já escutou ou já ouviu falar: não existe rentabilidade garantida, ou seja, não existe retorno de 100%. Eu posso repetir esse mantra de diversas maneiras: nenhuma plataforma de investimento pode apresentar uma proposta de retorno garantida, nenhum consultor de investimento pode lhe aconselhar sobre um determinado tipo de investimento porque ele é líquido e certo, todo o investimento envolve risco de perda e assim, com muitas palavras eu posso alterar a mesma informação e dizer a mesma coisa.
Porém, e aqui essa belíssima conjunção coordenativa de oposição precisa ser utilizada, a partir da sua branquitude privilegiada, os empreendimentos de Ana e Bernie prometem romper com o mantra básico e provocam rombos financeiros, que, para esta que vive em um país em que 33,1 milhões de pessoas não têm garantido o que comer, é uma piada, de mau gosto inclusive.
A fraude causada por ambos, somada, alimentaria um continente.
“Se faz necessário localizar o branco como uma posicionalidade entre tantas outras” é a frase que destaco do artigo de uma conterrânea, um texto que tem como título “Branquitude e fragilidade branca: conceitos para fazer pensar a Psicologia”.
Bruna Battistelli[2], na ementa, já diz à que veio: “é preciso pensar a centralidade de como a branquitude constitui práticas, sustenta privilégios e organiza nosso meio” e cita Maria Aparecida Silva Bento: “O branco pouco aparece, exceto como modelo universal de humanidade”.
“A ideia de raça é, sem dúvida, o mais eficaz instrumento de dominação social inventado nos últimos quinhentos anos”, frase de Aníbal Quijano reproduzida por Rita Segato[3], no livro Crítica da Colonialidade em Oito Ensaios e, como uma luva, compreende todo o desfecho que pretendo, pois ela amplifica: “o papel instrumental e funcional da raça para a extração de riquezas, inicialmente nos territórios conquistados e, mais tarde, em escala planetária.
Planetária porque Ana Delvey e Bernie Madoff atravessaram continentes no seu “esquema”.
Quem poderia inverter a lógica do investimento?
Quem teria a capacidade, para não dizer a ousadia de subverter a lógica de um sistema por anos e virar autoridade a partir dessa subversão? Por que raios até agora nunca alguém trouxe a discussão da branquitude sobre os contínuos e sistemáticos golpes financeiros no decorrer da história da humanidade? A Super Interessante[4] relacionou os maiores golpistas da história e, adivinha, o que, além da lorota, todos eles têm em comum?
Chris Baladão, bicho raro, formada e por coração advogada, na época em que o curso levava sociais em seu nome, escritora por necessidade de expor a palavra, bailarina porque o corpo exige, professora porque a experiência da vida precisa ser compartilhada.