Semana passada, o partido Lei e Justiça (Prawo i Sprawiedliwość — PiS, em polonês) de ultradireita da Polônia liberou para o público o conteúdo de vários referendums que serão votados junto às próximas eleições que ocorrerão em 15 de outubro de 2023.
Dois são assustadores. Um deles é sobre imigração e o outro sobre liberdade religiosa. O primeiro, sobre imigração, vem em rota de colisão com a novo acordo da União Europeia (UE). A UE entrou em consenso sobre as novas regras para acolher os imigrantes que avançam pelas fronteiras europeias. Entre os imigrantes, ressalta-se os refugiados das guerras (como a barbárie entre Rússia e Ucrânia) e os refugiados da fome e das péssimas condições sociais a que estão submetidos (como as pessoas oriundas no norte da África ou do Oriente Médio).
Nesse primeiro referendum, a pergunta é: Você é a favor que imigrantes sejam acolhidos pela Polônia? O PiS estimula com todas as forças a votar: “não”. O estímulo ocorre por meio da mobilização de toda a estrutura estatal para construir um imaginário do outro-inimigo. Nesse imaginário, todo imigrante é um inimigo a ser aniquilado. Lembra algo como o caso da relação entre os povos indígenas no Brasil e o último governo federal (todo indígena é um animal e, portanto, não tem direito a nada, nem sequer ao reconhecimento da demarcação de suas terras originárias).
O segundo referendum é sobre religião. A pergunta é algo assim: Você é a favor que muçulmanos convivam entre os poloneses? Novamente, o PiS já tem a resposta. O estímulo mais uma vez é pelo “não”. A base ideológica de ordem religiosa do PiS é o catolicismo ultraconservador (baseado em valores do tipo ‘papai-mamãe’ [heterocentrismo], contra aborto, contra LGBTQIAPN+ e uma série de regras hegemônicas e misóginas). Novamente, algo nos remete à ideologia extremista vivenciada na última gestão do governo federal e ainda presente em boa parte dos congressistas de ultradireita (e.g. Damares).
A discussão proporcionada pelas ideologias radicais que estimulam a barbárie estão muito além da discussão sobre laicidade do Estado ou sobre liberdade (aliás, termo que já perdeu seu significado emancipador e atualmente só é utilizado como conteúdo de manobra de massa). O epicentro da discussão está nas dinâmicas que fomentam esses quadros ideológicos que buscam romper com laços sociais. Em tempos extremos, observa-se mais e mais práticas radicais, seja nos espaços físicos, seja nos digitais. Em tempos de tecnologia, será que já não podemos decidir essas questões periodicamente por meio de votações eletrônicas? Será que somente a cada ciclo eleitoral que a cidadania direta pode ser exercitada sobre questões sensíveis? Será que o Brasil precisa de um contingente de congressistas desse volume? Será que podemos realizar uma reforma política no Brasil de tal forma que se tenha um envolvimento mais direto dos cidadãos e das cidadãs? Será que podemos ter mais referendums (essa definitivamente não é uma prática existente no Brasil, mas por quais razões — tenho mais hipóteses)? Será que devemos educar nossa sociedade para termos discussões políticas de fato — e não um jogo brutal de opiniões rasteiras? Enfim, a questão política na Polônia tem uma aderência por demais real em relação ao Brasil contemporâneo.
A questão está no plano do imaginário organizado, ou em outros termos, no plano ideológico | utópico. Até o momento a distopia pautada por práticas bárbaras de aniquilamento do diferente (do Outro) está ganhando. O mundo onde caibam outros mundos está perdendo, mas ainda assim, vivo em vários territórios.
A tempo: no MARGS há uma exposição “Todos iguais, todos diferentes?” de Pierre Fatumbi Verger.
O artista crítico Fatumbi proporciona uma viagem ao nosso próprio imaginário e nossos quadros ideo-utópicos internos. Entre as preciosidades estão uma série de pessoas — com suas visões de mundo —, das desconhecidas até as mais icônicas. Vale a reflexão.
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Leituras críticas indicadas:
- GUTFREIND, Cristiane Freitas; DA SILVA, Juremir Machado; JORON, Philippe. Laço social e tecnologia em tempos extremos: imaginário, redes e pandemia. Porto Alegre: Editora Sulina, 2021.
- VERGER, Pierre Fatumbi. Pierre Fatumbi Verger — “Todos iguais, todos diferentes?” e “Orixás”.