Conversando com amigos, parece que o sentimento geral é de saturação, de um cansaço não apenas físico, mas especialmente psíquico. Muitos de nós temos desmarcado compromissos, esquecido de realizar tarefas simples, procrastinado pequenos afazeres domésticos. A louça empilhada na pia e o pó sobre as estantes têm sido a prova material de nosso esgotamento.
Este quadro se tornou mais agudo após o resultado do primeiro turno das eleições presidenciais. É como se estivéssemos passando por um período de profunda ressaca política e, infelizmente, parece que o horizonte dos próximos dias não é lá muito promissor.
Estamos sendo bombardeados todos os dias por uma escalada inédita de absurdos, uma situação que nunca havíamos enfrentado. Navegar pelas redes sociais e ligar a televisão tem nos transportado para um mundo muito estranho em que um presidente confessa desejos canibalísticos, uma senadora da República mente sobre crianças que teriam seus dentes arrancados para praticar sexo oral, fascistas (sim, a palavra é essa) que invadem a celebração de Nossa Senhora de Aparecida e promovem um espetáculo esdrúxulo de extremismo e loucura… Enfim, o leitor bem sabe que essa lista de absurdos é muito maior e está crescendo em velocidade avassaladora.
A sensação é de que, para onde olhamos, somos testemunhas de um ato ensandecido perpetrado em verde e amarelo, geralmente aos gritos, porque essa gente parece ter perdido a faculdade de falar baixo. É tudo excessivamente colorido, tudo absurdamente barulhento. E feio. Se tem algo que talvez defina esse fascismo à brasileira é a sua completa e absoluta feiura estética e moral.
Cada bandeira do Brasil na janela transforma o carro de luxo em uma viatura funerária: sabemos que ali dentro morreu a humanidade de alguém e que aquele veículo transporta, agora, um arremedo de cidadão, um espantalho que ganhou vida para disseminar ódio pelo outro e desprezo pelas instituições do país. O mais triste de tudo isso é vermos estas mesma bandeiras adornando também as motos de entregadores de comida e carros de aplicativos de transporte. É brutal percebermos que o mal que se instalou em nosso país conseguiu fazer sombra até mesmo naqueles que mais padeceram na pandemia.
É um mal acéfalo e ignorante e, justamente por isso, se impõe como uma realidade inescapável, quase como uma força da natureza com relação à qual só nos resta minimizar os danos e proteger os nossos queridos. Um terremoto de burrice, um tsunami de estupidez, um deslizamento de uma lama odiosa e viscosa que aos poucos vai chegando cada vez mais perto de nossas casas.
Como não ficar com a sensação de que precisamos estar a todo tempo atentos ao que está acontecendo em nosso país, nosso bairro, nossa vizinhança?
A nossa atenção, o bem mais valioso na época em que vivemos, parece estar capturada. Os aplicativos das redes sociais e de relacionamentos fazem da nossa atenção o seu capital de giro, afinal, quanto mais estamos olhando para a tela dos nossos celulares, maior a quantidade de anúncios publicitários aos quais estamos expostos. Em suma: o Instagram, o Twitter, o Tinder, entre outros, oferecem uma injeção mínima de dopamina em troca da atenção do usuário. Esta é a moeda corrente que talvez muitos de nós nem saibamos que usamos.
Mas sabemos muito bem quando ela está em falta ou prestes a acabar.
Quando todo o nosso imaginário fica tomado pelos absurdos cotidianos, quando todas as nossas conversas são pautadas pelo medo e pela apreensão, é praticamente impossível direcionarmos a nossa atenção para outros lugares. No meu caso, por exemplo, tenho tido a péssima experiência de não conseguir ler mais de duas ou três páginas, mesmo que seja de um livro interessante. Não tenho conseguido acompanhar as tramas mais simples de seriados a que sempre assisti. Toda notificação no celular parece um fardo, como se qualquer demanda a mais pudesse fazer o copo da paciência transbordar.
Um gota de atenção tem sido um mina de ouro, nestes tempos.
E o mais triste é saber que isso tudo é um movimento coordenado, que faz parte do modus operandi da extrema-direita o sequestro das narrativas e a imposição de uma realidade paralela através da produção de fake news em ritmo industrial. Sim, reitero essa ideia sobre a qual há tempos venho falando: as fake news não são mentiras, mas sim a produção e imposição de uma outra realidade.
E pior, não se trata de uma realidade que nos é completamente estranha.
Afinal, não estamos há algumas décadas criando seriados, livros e filmes que se passam em cenários pós-apocalípticos? Tramas que narram a ascensão e consolidação de estados autoritários, autocráticos e, mais perto ainda do Brasil, teocráticos? Não reconhecemos nas ruas de nossas cidades o ar espesso de um mundo que se acaba em autofagia, como na série Years and Years? Não nos víamos já há algum tempo com nosso humor modulado pelo imperativo de felicidade e pelos psicotrópicos, como no Admirável Mundo Novo? Não vemos em Damares uma tia de O Conto da Aia? (foto de capa)
Eles têm tanto medo de que o Brasil se torne “uma Venezuela”, mas parecem adorar a ideia de que o nosso país se torne Gilead. Eles oram por isso, aliás.
Estes produtos culturais atestam algo que os psicanalistas já há muito tempo postulam: nada é mais desastroso para o psiquismo do que uma profecia que finalmente se cumpre. Nada nos tira mais do mundo do que as bordas entre fantasia e realidade serem lentamente apagadas, chegando ao ponto de não sabermos mais se estamos acordados ou vivendo em um pesadelo.
É como se estivéssemos experienciando um déjà-vu terrível em que nos sentimos transportados para dentro do enredo de uma ficção científica desoladora.
Mal sabíamos nós que todas aquelas narrativas que há décadas vínhamos contando sobre zumbis vorazes, robôs sencientes e governos autoritários não eram devaneios ficcionais, mas sinais de alerta para o futuro. Ou os bolsonaristas cercando um fiel vestido de vermelho na procissão de Aparecida não são tais e quais os zumbis de Walking Dead sendo atiçados pelo sangue de uma das vítimas?
Estamos saturados porque estamos sendo recrutados a lidar com a indescritível crueza das profecias realizadas. Nossa capacidade imaginativa e lúdica está sendo soterrada ao mesmo tempo que temos de ainda nos fiarmos em alguma esperança que nos permita imaginar que um outro futuro é possível. Os zumbis, os robôs e os autocratas saíram das telas e das páginas e agora estão à nossa frente na fila do supermercado, pegam elevador conosco e dirigem ao nosso lado na estrada. A quarta parede que os separava de nós desmoronou e a nossa realidade está sendo invadida por estes estranhos seres de que cuja humanidade desconfiamos.
O que fazer com isso tudo? Desligar o celular? Abandonar as redes sociais? Tanto pela minha própria vida quanto através do relato dos meus pacientes, vejo que esta não parece ser uma solução possível: estar atualizado das notícias nos dá uma mínima sensação de controle, ainda que nos custe um bom tanto de sanidade. Estar longe das redes pode ser reconfortante em um primeiro momento, mas sempre sobrevém um sentimento de conivência. Enfim, não há postura simples a se tomar nesse momento.
Da minha parte, tenho vivido em “modo de economia de bateria”: investindo a energia que sobra no consultório e na escrita.
Deixarei a nova temporada de O Conto da Aia para outro momento, para um futuro em que, com sorte, este seriado volte a ser uma obra de ficção, e não um documentário por demais realista.