O dia 8 de janeiro não foi um domingo comum. Milhões de brasileiros grudaram seus olhos na televisão, nos sites de notícias e nas redes sociais – muitas vezes, tudo isso ao mesmo tempo. De Brasília, imagens perturbadoras de uma multidão depredando a sede dos Três Poderes: Palácio do Planalto, Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal (STF). A destruição promovida traz as inconfundíveis digitais da violência nazifascista.
Em seu famoso ensaio “O Fascismo Eterno”, Umberto Eco adverte que o fascista não luta para viver, mas vive para lutar, estão sempre em meio a uma “guerra”, como muitos vídeos transmitidos em meio ao caos brasiliense deixam claro. Não por acaso, “Toda Vida é Combate” é o nome de um filme nazista de 1937.
O nazifascismo clássico pode chegar ao governo por eleições livres, mas consolida seu “poder” por meio da violência. O fascismo conquista a Itália após a “Marcha sobre Roma”, em 1922, evento explicado nessa coluna do Antony Jojohn aqui na SLER.
Inspirado nos fascistas italianos, um ano depois, Hitler tenta um golpe no fracassado “putsch da cervejaria” em Munique. Foi preso e saiu dizendo que a democracia deveria ser destruída por suas próprias forças. Sim, participaria de eleições, mas para acabar com a democracia depois.
Hitler é nomeado chanceler em 30 de janeiro de 1933. Não demorou nem um mês para amealhar poderes ditatoriais. O estopim foi o Incêndio do Reichstag. Apesar das investigações apontarem para uma ação individual de protesto, o Fuhrer não aceitou a conclusão da polícia. Dizia que era uma ação orquestrada pelos comunistas. Foi a senha para a perseguição violenta de seus opositores e a suspensão das liberdades individuais. Tudo para garantir “a paz e a ordem”.
A polarização e a violência políticas foram instrumentalizadas pelo nazismo para consolidar o seu controle sobre a vida alemã. De quebra, criaram o campo de concentração de Dachau, para onde mandaram seus opositores, além de judeus, homossexuais, ciganos e qualquer um que discordasse do regime. Muitos morreram em decorrência dos maus tratos e fome, outros foram simplesmente assassinados. Uma situação bem diferente de gente que faz live em seus iphones dizendo que está em um campo de concentração, afinal o banheiro está sujo e a comida, fria e sem sal.
15 anos se passaram entre o 9 de novembro de 1923, data do putsch da Cervejaria e a Noite dos Cristais, na mesma data, em 1938. O historiador britânico Martin Gilbert, em sua obra “A Noite de Cristal”, utilizada nesta coluna como referência histórica, qualifica o evento como “a primeira explosão do ódio nazista contra os judeus”.
Naquele dia, morreria um diplomata alemão, dias após sofrer um atentado a tiros. O autor era um adolescente judeu em Paris, que tomou a atitude após ter a família expulsa da Alemanha pelos nazistas. Apesar de, mais uma vez, ser um ato individual, foi tomado como prova da conspiração judaica contra o povo alemão.
A Noite dos Cristais é um caso exemplar da violência nazifascista. Evidentemente, é preciso situar que estamos no pré-guerra. Nos anos de guerra, qualquer escrúpulo foi mandado às favas pelos nazistas. Mas a violência nazista não explodiu de um dia para o outro, ela foi construída pelo regime.
Também é preciso contextualizar que a Noite dos Cristais teve uma dimensão imensamente superior à violência de 08/01 em Brasília: estima-se que mais de 1400 sinagogas foram destruídas na Alemanha, Áustria e nos Sudetos (região da então Tchecoslováquia anexada por Hitler), milhares de lojas de judeus foram saqueadas e destruídas, cerca de 30.000 judeus foram presos e 91 mortos, como informa o Yad Vashem, Museu do Holocausto de Jerusalém. Foi um verdadeiro pogrom e recebeu esse nome por conta dos vidros quebrados das lojas de judeus atacadas naquela noite.
O que eu pretendo ressaltar é do modus operandi da violência, tipicamente fascista e que guarda evidentes semelhanças com a invasão do Capitólio ou da Praça dos Três Poderes, onde também foram quebradas vidraças.
As atrocidades da Noite dos Cristais foram precedidas de anos de pregação incessante contra suas vítimas. Os judeus eram retratados como os responsáveis pelos males da Alemanha. Segundo o nazismo, esse grupo era quem estava por trás do comunismo, da dissolução da família e da cultura germânica. Estavam associados ao crime e à pornografia (a extrema direita atual continua chamando seus adversários de bandidos, mas prefere acusá-los de pedofilia).
A violência que veio antes e depois da Noite dos Cristais nasceu de palavras e discursos virulentos que transformou as minorias (judeus, ciganos, homossexuais) em alvos e os adversários políticos em inimigos. Também o 08/01 foi precedido de anos de ataques às instituições, em especial ao Lula e à esquerda (os comunistas que faziam Hitler babar de ódio) e ao Judiciário, representados no STF, TSE e personificado na figura do Ministro Alexandre de Moraes.
Hitler permaneceu em silêncio, antes, durante e depois da Noite de Cristais. Trump e Bolsonaro tampouco falaram quando a turba saiu às ruas em Washington e Brasília. Tudo que sabemos de suas supostas palavras vêm dos Diários de Goebbels. Segundo ele, o Fuhrer teria dito que “as manifestações não deveriam ser preparadas ou organizadas pelo Partido, mas na medida em que elas irrompessem espontaneamente, não deveriam ser impedidas”.
Mais uma vez, conforme Goebbels, Hitler havia dito que os policiais deveriam ser retirados das ruas, o que ele comunica ao Partido e à Polícia, nas palavras dele. Os poucos policiais que acompanharam o distúrbio, assistiram tudo de braços cruzados. Se fosse no Brasil, poderíamos dizer que ficaram tomando água de coco em meio ao caos.
Apesar de meticulosamente organizadas e realizadas pelo partido, em especial por seu setor mais radicalizado, as SA e pela Juventude Hitlerista, eram tomadas por espontâneas pelo governo nazista, em outra semelhança constrangedora com a tarde de violência tupiniquim.
Outro paradigma fascista: a culpa pela violência era dos próprios judeus. Afinal, foram eles, com suas atitudes, que foram responsáveis por enfurecer o povo. Assim como muitos debitaram os distúrbios do domingo na conta do STF.
A farra de ódio durou a noite inteira, até Goebbels ordenar que cessasse. Lojas, casas e sinagogas queimadas, objetos sacros profanados e destruídos. Esse era o quadro de desolação que deixaram. O terror havia sido imposto aos judeus que sabiam que não tinham mais espaço naquela Alemanha. A política nazista, naquele momento, era de provocar a emigração judaica e a tomada de seus bens, o que foi acelerado pela Noite dos Cristais.
Ao ir para tudo ou nada na Praça dos Três Poderes, a multidão representava o que Hannah Arendt chamava de “ralé”: pessoas unidas pelo ódio comum à representação política e suas instituições. O ódio à sociedade e à política motiva a ralé para ações golpistas e agressivas como a única forma de deter uma conspiração contra o País.
A ralé se une para odiar grupos específicos, minorias, sejam os judeus que “eram poucos e tem muito dinheiro” ou os indígenas que “são poucos, mas tem muitas terras” e, claro, os comunistas, ou “a esquerda”, como alguns gostam de dizer por aí.
A Noite dos Cristais também ensina que, quando o demônio da violência é solto pelas ruas e não é detido, ele só cresce.