“Como você pode colocar armas na cabeça de meninos de 13 anos?”, questiona, aterrorizada, a embaixatriz do Gabão no Brasil, Julie-Pascale Moudouté-Bell, ao ver seu filho com a arma de um policial apontada para a cabeça em uma via pública, no Rio de Janeiro.
O fato foi notícia nacional em 4 de julho.
Uma mãe, de um país do Continente Africano, faz essa pergunta em forma de clamor e indignação. Mas o problema, sra. Julie-Pascale, lamentavelmente, não está na idade do seu filho.
Está, sim, na pele preta com a qual ele nasceu. Está exclusivamente na melanina.
A mesma pele preta que fez com que o escritor Jeferson Tenório, grande vencedor do Prêmio Jabuti 2021, maior honraria da Literatura Brasileira, e patrono da Feira do Livro de Porto Alegre, em 2020, sofresse abordagem policial, como o próprio revelou no início do mês de julho. Pela 16ª vez em sua vida, frisou em postagem no próprio perfil do Instagram. Logo ele, que escreveu sobre a desastrosa abordagem policial que resultou na morte homem negro, em sua obra premiada. Esse acontecimento também foi notícia nacional.
É por estarmos cientes de que fatos como esses são parte do cotidiano do Brasil, bem como as suas “justificativas”, é que todos os dias, nós, mães e pais de crianças e jovens negras e negros, desde as nossas mínimas atitudes de cuidado estético antes de saírem de casa até as conversas mais diretas e abertas sobre racismo, pensamos em estratégias de proteção, fortalecimento da autoestima e autodefesa de nossos filhos.
Não há sentimento paralelo para uma pessoa branca com filhos brancos. Esse sentimento é só de quem cria para o mundo crianças e jovens negros.
Essa abordagem truculenta (a do seu filho, no caso, sra. Julie-Pascale), é o temor que temos, pois não sabemos o que passa na mente de muitos agentes da Segurança Pública ao ver corpos pretos, especialmente de meninos e homens nas ruas. E mais ainda: ao lado de amigos brancos, sempre tidos como vítimas, especialmente em bairros de classe média e classe alta. Não é lugar de negros ali, pelas regras, visão e orientação de algumas pessoas que compõem as forças de segurança.
Essas abordagens são resultado de uma estrutura mental adoecida por séculos de chibatadas desferidas contra a pele negra, simplesmente por ser negra. Uma cultura herdada de uso da força, da coerção que, hoje, em vez de chibatas usa pistolas e fuzis, sra. Julie-Pascale, seja para intimidação – como no caso de seu filho de 13 anos -, ou para execução.
Não basta, em nosso país, termos ministras e ministros negros e indígenas para aplacar essa situação. Mas a presença deles lá é um começo.
Não basta termos, em nosso Rio Grande do Sul, uma Bancada Negra na Câmara de Porto Alegre e na Assembleia Legislativa. Mas, a presença dessas vozes, em espaços de poder, é uma forma de sermos representados, lembrados, respeitados. À base de muita luta, claro.
Os números da violência contra pessoas negras são públicos. Estão acessíveis a todos que têm interesse em saber mais. O Sistema de Informação de Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde, aponta que entre 2019 e 2020, o número de homicídios no país cresceu 9,6%. Em 2020, foram 49,9 mil homicídios, ou 23,6 mortes por 100 mil habitantes. Entre as pessoas pardas, a taxa foi de 34,1 mortes por 100 mil habitantes, o triplo da observada entre os brancos (11,5 mil mortes por 100 mil habitantes). Entre as pessoas pretas, a taxa foi de 21,9. A diferença entre essas taxas cresce ao longo da série histórica (ver link IBGE ao final do texto).
Porém, o sentimento de dor e impotência frente ao que seu filho viveu (e a chance dos nossos viverem isso também), esse sentimento é íntimo, sra. Julie-Pascale. Ele só tem paralelo em mães e pais de crianças e jovens negras e negros.
Enquanto isso, a senhora aguarda uma resposta padrão, pois sabe que as imagens serão analisadas para constatar se houve algum excesso por parte dos agentes [sic]. “Se houve”.
Apesar de tudo, sra. Julie-Pascale, acredite: esse caso (assim como o do escritor Jeferson Tenório) só ganhou visibilidade pela sua posição social de destaque, bem como das demais mães que tiveram seus filhos agredidos nesse episódio. No dia a dia, como se diz, fatos como esse “passam batidos”. Nas periferias, nos shopping centers, nas favelas, nos supermercados, nas abordagens que param o transporte coletivo e só revistam pardos e pretos. São muitos exemplos.
Para que a maioria das pessoas que leem esse texto dedicado à senhora a vejam para além desse triste episódio, aproveito para parabenizá-la pelo trabalho realizado por causas sociais aqui, no Brasil, como a contribuição às Padarias Artesanais, e pelas ações de fortalecimento da relação do nosso país com o Gabão.
Fontes:
Globo News, Prêmio Jabuti, Jeferson Tenório, Brasil de Fato, IBGE - Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil, Entrevista com Julie-Pascale.
Eduardo Borba é jornalista graduado pela PUCRS, praticante de corridas de rua e de ações para promover a Diversidade, Equidade e Inclusão. Mestre em Comunicação Social e especialista em Direitos Humanos, Responsabilidade Social e Cidadania Global.
Foto da Capa: Acervo do Autor.
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