Reconheçamos que a chegada de uma nova época sempre encontra fortes resistências das pessoas que se formaram e adquiriram o conjunto de suas convicções, seus hábitos de pensamento e de vida através das instituições (e seus sistemas de valor) que, agora, no alvorecer do novo tempo, começam a desabar. Esta “crise” ganha sua mais relevante significação no fato de que os eventos do Novo Tempo não dispõem ainda dos conceitos e das categorias que os explicam, que os interpretam e lhes dão significado no conjunto de nossas experiências possíveis. Abre-se, assim, uma lacuna no tempo, tempo de desorientação para alguns (e de novidade para outros), em que as coisas não são mais, mas também não são ainda!
Fui formado no interior de uma ideia de Universidade que vejo, agora, sofrer um processo de grande transformação e caminhando numa direção que, pessoalmente, não tenho interesse em compartilhar. E mesmo sabendo que minha forma de resistência a estes “novos tempos” é insignificante e até mesmo irrisória –a única “arma” de que disponho é minha palavra – gostaria de deixar registrado o meu protesto contra as formas insidiosas ou abertas de construção de uma nova universidade em que nela antevejo o laboratório institucional onde se processa uma silenciosa experiência: a da derrocada do pensamento, a da transformação do homem em uma entidade supérflua e, finalmente, a construção da distopia tecnocrática.
Não cabe aqui perguntar se os agentes desta transformação – em geral situados nos centros de tecnologia, informação ou gestão, e mais raramente nos de ciências humanas e sociais – têm “consciência” das consequências de suas ações no presente: isto seria supor que eu sei sobre a história futura o que eles ignoram; que eu sei sobre a própria consciência destes agentes, o que eles mesmos não sabem, o que me colocaria numa cômoda (mas falsa!) situação: a de me tomar como consciência trans ou supra histórica, ou de me supor uma subjetividade transcendente, predicados que não creio nem possuir nem desejar possuir. Estou, a rigor, tão envolvido em minha época, disponho de elementos conceituais tão ou mais rasos e precários para avaliá-la ou julgá-la quanto aqueles agentes. Pensar o contrário seria aceitar como verdadeira aquela cena clássica do Barão de Münschausen em que, atolado num pântano com seu cavalo e tendo ido até o fundo escuro das águas, ele se puxa pelos cabelos e, não apenas se extrai do lodo como também… traz seu cavalo entre as pernas! Não posso nem pretendo me extrair de minha época para vê-la “de cima”, como se existisse um “acima ou além de sua época”. Esta é uma posição “historicista”, mas asseguro que meu historicismo termina por aqui!
Prefiro admitir que as condições do presente não determinam a história futura, que permanece uma aventura política aberta. Mas posso perceber o caminho que a história passada percorreu para chegar ao presente em que vivo e sou mesmo capaz de ouvir as vozes de um passado silenciado – e silenciado por aqueles que venceram e que querem, à fina força, fazer esquecer a existência daquelas vozes, calar e controlar sua lembrança e, ao fim, nos convencer de que a única direção que aquele passado poderia tomar é esta que culmina em nosso inevitável presente!
Há sinais, neste meu presente universitário, que parecem apontar para futuros que reputo indesejáveis. E o mais indesejável deles – para mim – é a transformação da universidade de um lugar do “como pensar” em um outro, o do “como fazer”.
Retomo, rapidamente, o velho tema weberiano da “razão instrumental” e insisto no fato mais ou menos evidente de que nossa instituição, ao mesmo tempo em que define “fins”, “valores” e “missões”, oferecendo ao incauto um verniz de compromisso social sem convicção e que me cheira, às vezes, como um deboche ao “humanismo”, esses mesmos “fins e valores” (universidade crítica, democrática, pública, de qualidade socialmente referenciada e outros qualificativos de efeito mais retórico que efetivo. Verdadeiro, para usar a expressão latina, “captatio benevolenciae”), no fundo, tais “fins e valores” são incompatíveis com o escopo geral e profundo onde se assenta as crenças e convicções de boa parte de seus agentes. Não se trata de uma universidade “maquiavélica” (o termo é inadequado, na medida em que Maquiavel nunca foi maquiavélico!), em que os fins justificariam os meios. O problema é mais grave, os meios substituem os fins e aqueles fins de aparência ética elevada são formulados apenas para esconder os meios! De qualquer forma, é sobre a dominação hegemônica da “técnica” e orientada por exigências mercadológicas que está sendo reconstruída a instituição universitária. É por isto que, talvez, aquela velha noção de ‘razão instrumental’ aqui não funcione mais: não se trata de adequar os meios aos fins – dispensando a avaliação moral destes fins tecnicamente alcançáveis: sabe-se, de antemão, que aqueles fins são irrelevantes, pronunciados e anunciados apenas como uma espécie de concessão retórica, mas aqueles agentes estão conscientes de que “crítica”, “democracia” ou “público” não farão mais parte do léxico deste mundo novo que a universidade ajudará a nascer.
Isto pode parecer “conservador”, na medida em que resistir ao “avanço” ou ao “progresso” técnico seria uma atitude reacionária, daquelas que evitam o caminhar da humanidade para futuros radiosos e, afinal, inevitáveis. Aceito, sem grande constrangimento, a acusação de “conservador”, desde que me informem antes em nome de qual “progressivismo” eu estou sendo acusado!
Já estamos, para início de conversa, num campo onde o escopo moral que porventura tenha nos orientado até aqui, aquele fundado numa determinada noção de dever, de desinteresse, de universalidade, de cuidado com o outro, perde seu efeito normativo e entram em cena valores performáticos e estratégicos, voltados para o sucesso e os resultados em que, entre outras, os homens também são apenas meios (na verdade, “recursos”: recursos humanos!), ignorando os fins que não são mais determinados por nós mesmos (concepção antropológica), mas, pela própria técnica. É o próprio artefato técnico que, doravante, determinará e criará o ambiente em que se darão nossas relações com os outros, com nós mesmos e com o meio em que vivemos. A questão, pois, é simples de ser formulada: como é possível conciliar competitividade, performance, ranqueamento, empreendedorismo e resultados mensuráveis com “universidade solidária, consciente, crítica, democrática, pública e socialmente comprometida”? Receio que estejamos diante da quadratura do círculo! Ou, para não perder o humor, do casamento do pote de ferro com a panela de barro: na hora H, a competitividade bate e a solidariedade, coitada, apanha!
Quando vemos ou ouvimos o discurso estridente e obsessivo ao nosso redor, a respeito de ranqueamento, inovação, competitividade, produtividade, gestão, governança, produção, negócios…, denotando e conotando, com uma linguagem nova, a construção de uma outra realidade institucional (mudam-se as palavras para que o sentido que atribuímos às coisas possam também mudar) é porque algo de importante aconteceu e que não se trata simplesmente de “adequar a universidade às exigências dos novos tempos”: trata-se de criar este “novo tempo” e apresentá-lo, finalmente, como resultado de uma evolução natural. Há, pois, uma revolução em curso: a que instalará a distopia do homem-recurso dispensável, a que eliminará do cenário universitário a resistência crítica, uma vez que ciência “objetiva e neutra” não é objeto de debate público! O que está em jogo é a simples eliminação do espaço público-decisório.
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