José Antônio Silva é de uma geração que sentiu na carne a maldade do mundo. Não por acaso, seus versos são plenos dessa consciência:
“só os locais de duríssimo acesso
ficarão a salvo
do terror humano”
O poeta, autor deste Vagar em Macau, teve sua juventude debaixo do mau tempo das ditaduras latino-americanas da década de setenta, quando traficou com sua turma os primeiros livros independentes, que passavam de mão em mão junto com as ideias que estavam proibidas de circular. Nesse período, ou se era consciente ou alienado. Assim, não esperem do Zé a esperança sem fundamento, a leveza de quem está com a vida ganha, o relativismo de quem vive em cima do muro. Como ele mesmo declara neste excelente poema, “Velho Testamento”:
Creio no Deus
do mal
e do bem.
No inverno
nos despedaçará;
na primavera
nos fará renascer.
Creio no Deus
primitivo:
no outono
casa trancada;
no verão
um cachorro louco.
Creio no Deus
vingador;
nada perdoará
nada esquecerá
e a vida seguirá assim
– sob sua espada.”
Mas seus textos também se permitem ser lúdicos. O final, por exemplo, de um poema sobre as tragédias da vida no Haiti brinca com som do nome do país:
“Haiti
inferno no paraíso
ai de ti.”
É brincadeira com coisa séria. Mas há outros, como este que desestrutura a lógica do reino animal, em que o poeta pode rir sem medo de ser feliz:
“todo animal
aqui citado
não sofreu danos
durante a produção
desta brincadeira”
Sua poesia é capaz, ainda, de se firmar para além do tempo, realizando com maestria um tema que atravessa o ser humano do dia zero ao infinito: o vazio. Repare no fim deste poema “Buraco Negro”, em que a busca por preencher, durante toda a vida, a falta, o buraco, acaba com a seguinte revelação:
“até que entendi enfim:
aquele maldito só fecha
após enterrar a mim.”
Na reportagem sobre os males da época, na profundidade filosófica e existencial, na percepção aguçada sobre a arte, temos, aqui, dando forma a isso tudo, um poeta. Ou seja, aquele que é capaz de dizer as coisas como quem as cria e as enuncia pela primeira vez:
“Se o início foi o verbo
ainda assim
nada
nada foi dito
pois não fui eu quem o disse”
Foto da Capa: Reprodução de Redes Sociais
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