Eu fui uma criança bastante solitária.
Talvez todos tenhamos sido, na verdade. Quando somos adultos, é comum lembrarmos de experiências de infância em que nos sentimos sozinhos, mas isso não necessariamente se traduz em um abandono parental ou algo do tipo. Isso acontece porque a infância é um dos períodos de nossas vidas em que estamos imersos em uma leitura muito singular do mundo, em que sentimos inclusive que este mundo se molda de acordo com nossos pensamentos.
Quando penso nos meus primeiros anos de vida, em geral acabo trazendo para a memória uma cena bem específica: estou sentado no chão do meu quarto brincando de LEGO. Bem simples.
Eu era fascinado por LEGO – assim como boa parte da minha geração, claro.
Junto desta lembrança, me surge uma sensação apaziguadora: quando eu estava ali, sentado no chão do quarto, montando carros, casas e espaçonaves com meu LEGO, o mundo em volta ficava em silêncio. Essa é uma lembrança profundamente silenciosa. E eu gosto disso.
Mas tem mais uma coisa: quando eu estava com aquelas peças nas minhas mãos, eu me sentia no controle da situação. Era como se o mundo se confundisse com aquela caixa de LEGO e eu pudesse montá-lo e desmontá-lo ao meu bel prazer. A minha brincadeira solitária trazia pra cena do mundo a minha realidade interna.
Afinal, quando crianças, todos achamos que temos controle sobre o mundo.
E não há lugar mais solitário do que aquele em que julgamos ter controle sobre tudo.
O problema é que isso não se deve somente à chamada onipotência do pensamento, mas é também um movimento defensivo: quando somos pequenos, precisamos inventar realidades controladas para darmos conta do desamparo fundamental que nos habita.
As peças de LEGO eram os tijolos que davam contorno pra minha angústia.
Interessante é que este jogo entre desamparo e controle faz parte também da vida adulta, não só da minha, mas a de todos. À medida que crescemos, nossas peças de LEGO vão ficando cada vez mais abstratas. Pra alguns, podem ser o seriado na televisão no final do dia, as páginas lidas antes de dormir, a coleção de selos, a cama arrumada de uma forma confortável, um jeito específico de fazer café de manhã… enfim, cada um de nós inventa um LEGO íntimo que serve de anteparo às rugosidades da vida.
Vamos nos apegando a pequenos rituais para dar conta do cotidiano, mas especialmente em momentos em que nos sentimos mais vulneráveis, como no auge da pandemia de COVID, por exemplo. É como se tivéssemos precisado manter sempre um lugar seguro ao qual pudéssemos retornar, apesar da contagem de mortos, apesar do medo de se contaminar, apesar do risco de não termos vacinas disponíveis, apesar de um governo que nos queria mortos. A pandemia nos mostrou que os “apesares” em que nos refugiamos são muito valiosos.
O problema é quando este espaço seguro se torna não apenas um lar em que descansamos, mas também uma fortaleza contra os outros.
Assim como na infância, nosso desamparo adulto está profundamente relacionado com o receio de que algo ou alguém de fora venha nos atacar ou nos fazer algum mal – de que percamos o controle. Por vezes, começamos a colocar cercas eletrificadas e alarmes ultrassensíveis em nossas casas de LEGO, afastando qualquer possibilidade de que um outro possa bater à nossa porta. Acabamos por confundir o contato com a alteridade com uma ameaça à nossa integridade. O vizinho se torna um inimigo.
Não raro, esta alergia ao outro surge como uma “necessidade de controle”, queixa que tanto estamos acostumados a ouvir nos consultórios.
A “necessidade de controle” pode vir, na verdade, como uma tentativa de domesticação do outro naquilo que ele tem de diferente. Aí já não se trata da construção de um lar para o qual retornar, mas de um campo minado em que o outro não pode pisar.
Vivendo em uma sociedade em que entendemos a diferença como um ataque pessoal, por vezes acabamos produzindo no mundo um apagamento da alteridade em prol de um suposto conforto pessoal, uma necessidade infantil de não termos nosso LEGO desmontado.
Ainda que todos nós sejamos ainda habitados pela nossa infância e pela onipotência de pensamento típica das crianças, também já deveríamos ser capazes de suportar um pouco do barulho de fora como um convite ao diálogo, e não somente como uma invasão mortífera.
O outro, neste contexto, como um convite a estranharmos a nossa própria casa. E, talvez, como aquela pequena bagunça que nos permite olhar para além das nossas tão controladas certezas onipotentes.