Eu tinha um tio, por quem nutria grande adoração, Tio Lelebá, que trabalhava no Lloyd’s Brasileiro, uma célebre companhia de navegação marítima, e que vinha todos os sábados de manhã nos visitar, ali na Madalena (Recife), onde morávamos. Trazia sempre uma novidade. Mas era para nosso cuidadoso primo, Mazito, que estavam reservadas as “grandes” surpresas: os brinquedos mecânicos (de corda) vindos da Alemanha: tratores que andavam sozinhos, tanques de guerra que cuspiam faíscas, motocicletas que faziam ruídos, trenzinhos que soltavam fumaça… Mazito, diferentemente de mim (que tinha o nefasto hábito de destruir os brinquedos para ver o que tinham dentro), guardava os seus com irretocável zelo e eles duraram para muito além de sua infância. Lembro que minha tia, caso eu me comportasse direitinho, fazia a extrema bondade de me mostrar os brinquedos perfeitamente preservados de Mazito, mas sob uma condição: não podia tocá-los! Foi ali, nos brinquedos, que começou a se definir meu interesse por filosofia!
Todo brinquedo tem algo de mágico e encantador, mesmo passada a idade de “brincar” e se tornar “sério”: há neles uma realidade adulta reduzida e controlável, uma metáfora da vida e a possibilidade de fazer delas (da vida e da metáfora) o que quisermos. Walter Benjamin observou que entramos na vida através dos brinquedos. Assim, o que me separava de meu primo Mazito era que eu queria saber o que a “vida” tinha por dentro, como e por que “funcionava”, o que a fazia se mexer, de quais ilusões era feita… Lembro minha satisfação quando nossa televisão pifou e o técnico – Seu Nascimento – veio até nossa casa e abriu aquela caixa mágica: houve algo de decepcionante em só encontrar fios, válvulas e tubos catódicos!
Decepção maior é quando vejo os brinquedos de hoje, feitos de telas líquidas, comandos miraculosos, reproduzindo realidades maravilhosas e improváveis! Mas, ao abrir aquelas caixinhas – ainda tenho curiosidade! – encontro apenas circuitos impressos que mais parecem pequenas cidades, com seus prédios, praças e ruas vistas de sobrevoo. Tanto os brinquedos antigos como os novos nos conduzem para além da realidade fática: os velhos brinquedos de corda entravam na minha realidade; nos novos, nós é que entramos na “realidade” que eles nos propõem, com seus “níveis” sempre mais difíceis, com surpresas que “matam”, mas, no caminho, pode-se “comprar” ou “ganhar” vidas sobressalentes e sua promessa de ressurreição!
Havia um dia em que os brinquedos antigos – no caso de Mazito, não do meu! – terminavam sua função dentro da sua caixa original e no fundo de um armário: já haviam cumprido sua valorosa missão de permitir e facilitar nosso amadurecimento e, agora, a vida real e “séria” assumiria seus direitos. Nos jogos virtuais de hoje, a vida real e adulta parece que não começa nunca, há sempre um “nível” mais elevado a alcançar, um outro jogo que foi lançado, reproduções perfeitas da realidade, uma “realidade”, no fundo, inofensiva! Como se sua missão fosse nos impedir de crescer, de enfrentar a vida, de amadurecer, nos aprisionando numa infância interminável e virtual!
Assim, se havia um mundo separado dos adultos e das crianças, iniciado com a literatura infantil (séc. XVI), como observou Aaron Meirovitch (Yoha Univ.), hoje praticamente não há mais essa separação: o mundo adulto invadiu o das crianças, o mundo infantil se prolongou no dos adultos! O que coloca sérias questões a respeito das nossas relações intergeracionais (onde a educação se baseia, em princípio) e em relação à constituição da própria “autoridade” pedagógica, familiar, política…
Transformados em eternas crianças, fecha-se o circuito da irresponsabilização pública e da nossa débâcle moral, e quando nos cobram nossa madura e adulta intervenção, afogamo-nos em depressão, inexplicáveis angústias, euforizantes de toda sorte e muita “autoajuda”!
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Foto da Capa: Gerada por IA