1 – O frescor e o ruído do tráfego entram pela janela, e um som de motor palpita ao longe, ora geladeira antiga, ora ar condicionado dos tempos do Menem, e dormes pegada ao meu corpo, sou tua almofada, há anos, e sei, a essa altura, que a perfeição é uma virtude do instante, assim os pés no cimento quente do quintal da praia, outra vez o menino sardento, criatura ruiva do átimo, minha cabeça pelada no reflexo do vidro, e a sede, que se aplacava com Teem, a garrafa com suas estranhas evoluções espiraladas, e agora o tema insistente do Bolero de Ravel, as texturas distintas dos instrumentos por que passa, a temporada em que quis amar a música clássica, antes de Coltrane, uns amigos que apareceram de madrugada na casa da mãe, que expulsei com Schumann, talvez Schubert, seguramente não Chopin, e me parece raro voltar àquela noite, eu usava o roupão azul royal herdado de meu pai, que ainda usaria numa festa à fantasia antes de perdê-lo, e gostaria de ter um single malt na mão, mas era provável fosse um conhaque qualquer, que ofereci aos patifes antes que se fossem em busca de alguma coisa mais animada, e me agrada lembrar desses amigos que me tomou o tempo em busca de uma aventura de crescente intensidade, como o Bolero, turbinada por um Teem com cinquenta e um, até a garrafa é coisa fina, seres precários de minha precária cabeça calva, as sardas se foram depois de tantos verões à sombra, nas solas dos pés o beijo em brasa do cimento, e te apertas mais contra meu ombro acolchoado e teus cabelos têm um cheiro bom de amêndoa e encontramos metade do mundo perfeito, pois tudo é por um instante, e logo na volta seguinte soa mais alto e desagradável o motor longínquo da era Milei, já não sopra a brisa erguida pela primavera portenha e o dia avança menos fresco e mais engarrafado pela janela.
Foto da Capa: Freepik / Gerada por IA
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