- Não se pode ver seu rosto, nem de perto, nem de longe.
- O palco instalado no coração de La Rural, como parte da Feira da Música, não chama a atenção de muita gente, mas ainda assim a moça solitária, com um abrigo troncho, secundado por um enorme capuz, insiste, finge tocar um teclado, de onde dispara, talvez, suas bases pré-gravadas. Espero pela entrada de um DJ ou rapper para fazer a convencional intervenção, mas ninguém mais aparece.
- A artista sem rosto lalaleia alguma coisa que termina com sus besos y un desastre. Cogito que se fosse seus beijos, um desastre, teria ao menos humor. É difícil prestar atenção, a pança gorda está ali em busca da tenda de panchos que promete uma mostaza repicante (os argentinos e seus superlativos). Escuto ainda uma vez sus besos y un desastre quando a música para. Silêncio total no descampado.
- Nem grilos.
- Ela agradece, sobrevêm alguns aplausos, não é tão difícil bater as mãos. Ela segue sem rosto, feito um desses vilões de Guerra nas Estrelas. É uma composição da minha autoria e é a primeira vez que toco ela ao vivo, mas está bombando nas redes.
- Certamente não disse bombando, mas terá sido um equivalente portenho.
- Volta a disparar uma base, cantará outro tema com a mesma voz de menina que força certa gravidade, constrangida às mesmas batidas eletrônicas de há trinta anos, uma lamúria por certo original sobre as dificuldade do amor (desta vez sem desastre), e a mostarda é mesmo repotente, o que me faz lacrimejar um pouco.
- Fui músico durante muitos anos. Sei o que é tocar para públicos grandes e não obter nenhuma resposta. E tocar para ninguém. Sei o que é, sozinho, longe de casa, perto de casa, sem cachê, acreditando que tudo aquilo pode ser um salto na carreira, pôr-se ali, como um investimento, para pessoas que estão apenas atrás de um pancho ou de um lugar para fumar.
- E logo a frustração, a dúvida ou, pior, a certeza (sempre um maior desastre).
- Quando se tem uma banda é menos cruel. Por ásperas que sejam as relações internas, não se está desprotegido no descampado da cena, sem algum tipo de escudo.
- Existe, claro, o avesso disso: a integração com uma plateia generosa, a fidelidade de um público, por menor que seja, o retorno que alguém nos dá sobre o efeito que uma música ou um show produziu em sua vida. Mas isso, em geral, chega tarde demais (quando chega), para boa parte das pessoas que se arriscaram uma vez no palco. Os estímulos que os adultos oferecem às crianças, nas apresentações escolares ou um pouco depois, desaparecem de todo na adolescência.
- Talvez isso explique o reativo dos punks e das vanguardas.
- Por ora, me parece tarde demais para a garota de capuz se salvar, ao menos nesta tarde. Nem os nomes artísticos, os mascaramentos, a egolatria, os entorpecentes virão em seu auxílio. Se ela ao menos gritasse, mas Kurt Cobain calcinou tudo: estamos entediados e pedimos: nos entretenham.
- Dou a última bocada no pancho, penso em fazer de tudo isso matéria de uma crônica.
- Onde afetarei uma superioridade sobre a tristeza e o ressentimento, debaixo do capuz da escrita.
Buenos Aires, Hora:Zero
Besos y un desastre, panchos com uma mostaza repicante e uma feira de música em La Rural
Pedro Gonzaga (1975) é tradutor, poeta e escritor. Doutor em literatura pela UFRGS, com diversas publicações, desenvolve há anos trabalhos com turmas de escrita criativa, voltadas para o público jovem e adulto. Foi cronista dos jornais Zero Hora e Estado de São Paulo. Natural de Porto Alegre, vive atualmente em Buenos Aires, de onde escreve a coluna Buenos Aires, Hora:Zero.
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