1. Sonhei que escrevia um conto. Um poeta devia sonhar em versos, mas meus sonhos são sempre prosaicos.
2. Desta vez, meu inconsciente contratou Lucas Gonzaga para fazer a edição, pois era um trabalho dinâmico e certeiro na troca das imagens. Eu me via a uma mesa digna, escrevendo, caneta-tinteiro de luxo entre os dedos, aquele acetinado Mont Blanc, conhecido apenas nos freeshops da vida, enquanto as imagens da história se projetavam na parede a meu lado, nítidas à escuridão da madrugada. Nelas, havia duas pessoas, frente a frente, interagindo por meio de dispositivos amplificados. As máquinas operavam com um banco de frases de efeito, cujos tons variavam do altamente motivacional ao vituperantemente acusatório, e ambas haviam selecionado o modo retrô de comunicação.
3. Mês passado sonhei com um protagonista que tinha uma barba que crescia dez centímetros por dia. No começo, lutava para apará-la, a fim de levar uma vida convencional. Com o tempo, como todos nós, cedeu ao destino, desistiu de tudo e passou a dormir como um faraó, enrolado nas próprias faixas capilares, reunindo todos os seus bens num monoambiente de fundos, seguindo a clássica e portenha maneira de se empiramidar.
4. Volvamos ao sonho da última noite.
5. As duas criaturas, seus dispositivos, as deles-suas falas, o modo retrô.
A: Se você não vê o problema, você é parte do problema.
B: O que não é tóxico para você, pode ser tóxico para mim. Seja gentil.
A: A gentileza é uma construção social da classe dominante.
B: O amor não é uma construção. É gratuito e superior. É energia e empatia.
A: Os isentos têm as mãos manchadas com o sangue dos inocentes.
B: Você precisa investir na positividade, na sustentabilidade do planeta.
6. Era um sonho de um conto natimorto. O realismo há muito perdeu seu charme.
7. Acordo do sonho na Capital Federal. O barulho do tráfego na General Las Heras há muito dispensa o despertador. Confiro o celular. As frases de efeito continuam ali. Fecho os olhos, mas os argentinos têm um amor às buzinas que em muito supera o nosso, se podem crer que isso seja possível. Suas sirenes não ficam atrás. Ou todo o povo está morrendo, ou são cães a ladrar por princípio, como diria Drummond.
7. Preparo o café. Dica de viagem aos meus paisanos: tragam café moído. No super, as marcas com preços amenos vêm com açúcar misturado. Abominável e inexplicável. Terminei por comprar um moedor, e o ter de triturar os grãos adicionou uma mecânica saborosa às manhãs, à paz da rotina, antes que as notícias de um país que de algum modo não fui capaz de purgar comecem a me atingir.
8. O Brasil, como no Brasil, sempre me assombra. De dia e muito mais à noite.
9. Sonhar em prosa realista ou fantástica é, de algum modo, um alívio, um remédio. Facilitam a leitura, paradoxal, de nossa condição. Mas noite dessas sonhei em prosa alegórica. Um guarda da fronteira, numa madrugada de tanta neblina que não permitia que se visse nenhum dos lados, pedia-me a palavra-chave para validar meu passaporte. Eu dizia, passaportes valem por si só, ao que ele contestava: sem o passe, nada feito.
10. Tentei todas as senhas, reais e inventadas. Nada. Horas de vapor e branca escuridão. Até que a noite e a neblina se foram dissipando. Percebi estar no meio da pampa. Ao olhar para o guarda, estava ali um espantalho.
11. Naquela manhã, nem o café me salvou.