- Nosso elevador, minúsculo e antigo, tem porta pantográfica, dispositivo ainda corrente em Buenos Aires, desses retalhos vivos do passado que se espalham por toda a cidade. De certo modo, a capital portenha é uma Roma de menos de quinhentos anos, em que prédios franceses, casas espanholadas, caixotes funcionais, faraônicos prédios governamentais se mesclam, sem critério algum, entre fiações expostas, magníficas avenidas e parques mantidos com esmero. Por alguma razão, parece haver mais tempo num lugar quando este lugar é composto por muitos tempos. E mais possibilidades de beleza, porque lampejam por entre a fuligem, as ruínas e os novos espigões envidraçados.
- Nosso elevador e sua porta pantográfica. E mesmo que para muitos seja um terror ver as engrenagens do prédio ao cruzar pelos andares, confesso que isto me encanta. Desagradam-me as coisas disfarçadas por carenagens de alumínio ou plástico, em especial quando tentam conter a intrusão da verdade, como se esses isolamentos pudessem fazer menos aterrorizante a ideia de ser içado do chão à altura de quarenta metros.
- Nosso elevador cospe uma voz gravada ao atingir seu destino: piso quinze. Joni Mitchell, nossa gata, sempre se lança em direção à porta ao ouvir o informe, mesmo quando estamos em casa, o que nunca falha em nos comover num mundo em que, as mais das vezes, só nos esperam assim os usuais credores e os sicários das redes.
- Nosso elevador, em sua lerdeza demodê, dá-nos, na descida, tempo para pensar nas coisas a fazer na rua; na subida, para o que há a fazer em casa. Por vezes, há tempo, inclusive, para discutirmos os eventos desta terra, como uma reunião presidencial para resolver o dilema das bancas de revista sem figurinhas para os álbuns da Copa, ou se é necessário criar mais um tipo de câmbio, como se não bastassem os seis já existentes. É o que acontece, suponho, quando as carenagens se convertem em programa político. Portas pantográficas nos obrigariam a ver a injusta distribuição, as estruturas corroídas dos serviços públicos, a desesperança coletiva, tudo o que é mais fácil mascarar. E isto não é um privilégio do poder local: governar é hoje, no mundo, cobrir todas as coisas com plástico.
- Nosso elevador e o álbum da Copa. Ontem havia um pacotinho perdido no chão (admito que não sei o que se decidiu sobre o assunto na mais importante cúpula das Américas). Deixei os cromos onde estavam, quem sabe a dona ou dono voltem a encontrá-los, tenham a alegria do meu querido tio Régis e de seu neto Santi: completar todas as equipes. Quem sabe na pança do pacotinho esteja a figurinha rara — carimbada, se dizia —, embora o mais provável é estarem ali três fotos repetidas de um jogador qualquer da Sérvia.
- Nosso elevador tem luzes que a ninguém favorecem — frias fluorescentes bruxuleantes —, mas ainda assim os cabelos da Tainá resplandecem com um tom que faz da nogueira uma coisa móvel e dúctil.
- Nosso elevador nos leva e nos devolve à cidade em que escolhemos viver, ainda que ele jamais saiba ou pareça se importar com isso. É uma espécie de anti-Joni, a saltar mecânica e indiferentemente a todos. Mas se eu lhes disser que há algo de comovedor em sua pequena decadência pantográfica, espero que me acreditem.