- Meu avô materno dizia: difícil não é lidar com as pessoas, mas com suas idiossincrasias.
- Era uma de suas palavras prediletas: idiossincrasia.
- Demorei um tempo para saber-lhe o significado, outro tanto para entender o papel que ela desempenhava em sua sabedoria. Ademais, vale esclarecer que conheci poucas pessoas tão idiossincráticas quanto ele.
- Certo é que todos temos as nossas. E elas se agravam com o tempo, me parece. Um guru de autoajuda acreditaria em maneiras de superá-las, venderia variadas e lustrosas formas de cura. Prefiro aceitá-las: aceitar as dos que amamos, as nossas, e daí tolerá-las ou mesmo comparti-las.
- Em outro lugar já falei de minha fascinação por sabonetes, que me fez alvo de insidiosas chacotas de desafetos e até de malévolos amigos. Um deles: isso já é bizarrice. Outro: um luxo. Daí vai menos que um pulo para “um luxo num mundo em guerra”, ou “excessos de um pé rapado”. E talvez aqui tenhamos chegado a um ponto. As pessoas têm suas manias, seus luxos privados, mas estão dispostas a condenar apenas os dos outros, idiossincraticamente.
- Sabonetes. Sei que não estou só. Há aqui na cidade uma pequena e preciosa loja no coração de Palermo, na rua Gurruchaga, 1821, chamada Jabones Sabater, e que parece sempre a meio passo de falir, embora siga lá há anos. Além das fragrâncias tradicionais, há um acabamento elegante, e bons itens para regalo (por ora não trabalhamos com encomendas).
- Um sabonete de qualidade tem qualquer coisa de poema. Seu aroma se prende à pele, mas não resistirá muito tempo, como o efeito de um poema. Contudo, sua lembrança olfativa haverá de perseverar, como certos versos, aos quais voltaremos, nunca de todo perdidos, apontando para a impermanência da beleza no mundo, para sua volatilidade, mas ao mesmo tempo também para a experiência transmutada em memória dentro de nós.
- E digo isso porque é fácil converter uma vida de hábitos divergente em folclore. É fácil apontar sua inviabilidade financeira, social e política. A diferença é um incômodo, um provável erro de cálculo a ser consertado no próximo ciclo, quando seremos todos perfeitos e nada idiossincráticos, o que, aparentemente, faria a alegria de meu avô. Mas não. Parte do que somos, parte do que ele era, reside em nossos irreconciliáveis caprichos. E é provável que nossa última reserva de individualidade esteja, de fato, neste problema de sermos e estarmos com os outros avessos a um acordão.
- Meu sabonete de lavanda envelhecida não entra em balcão de negócios.
Buenos Aires, Hora:Zero 05
Em outro lugar já falei de minha fascinação por sabonetes, que me fez alvo de insidiosas chacotas de desafetos e até de malévolos amigos
Pedro Gonzaga (1975) é tradutor, poeta e escritor. Doutor em literatura pela UFRGS, com diversas publicações, desenvolve há anos trabalhos com turmas de escrita criativa, voltadas para o público jovem e adulto. Foi cronista dos jornais Zero Hora e Estado de São Paulo. Natural de Porto Alegre, vive atualmente em Buenos Aires, de onde escreve a coluna Buenos Aires, Hora:Zero.
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