1. Eu me lembro de um livro de Joe Brainard (foto da capa), chamado Eu me lembro, uma memória construída por evocações — que parecem versos —, graciosas, melancólicas, iniciadas pela expressão eu me lembro. Georges Perec, o famoso vanguardista francês, também escreveu, anos depois, seu próprio Eu me lembro, declarando que um livro assim tinha de ser copiado. E depois pelo menos outros três autores. Cogito, modestamente, escrever a crônica neste modelo. Depois do segundo furto, estamos todos redimidos.
2. Eu me lembro de um picolé concebido para ser um punho cor de rosa, com o indicador estendido, polvilhado pela crocante areia que trazia o vento de Capão da Canoa.
3. Eu me lembro de quase todos os jingles políticos da minha infância, quando eu torcia para a música mais empolgante. Marcou-me um cujo refrão minimalista dizia: Britto, Britto e Mercedes, Britto.
4. Eu me lembro da altura do pé direito do primeiro apartamento em que fiquei em Buenos Aires, mugriento e belo como a cidade.
5. Eu me lembro de como o velho da padaria da esquina nos roubava descaradamente no troco dos cacetinhos, abocanhando nossa chance de comprar uns sugus da Suchard.
6. Eu me lembro da tarde em que minhas colegas do Rosário passaram a ter coxas e outros atrativos aqui não mencionáveis.
7. Eu me lembro de um desenho japonês chamado Piratas do Espaço, que passava nas tardes da Rede Manchete, ainda que quase ninguém mais se lembre.
8. Eu me lembro de uma fase fitness do meu pai e de sua ameaça de tatuar um dragão no braço, que moveria sua língua de serpente a cada contração do bíceps.
9. Eu me lembro de como fugi de meu primeiro e único estágio em publicidade quando o dono da agência me disse que ali era preciso dar o sangue e diante de mim havia um anúncio de carros usados.
10. Eu me lembro das sintéticas cacharréis que nossa mãe nos fazia usar, com suas constritoras golas. Mas nas fotos parecíamos descolados existencialistas mirins.
11. Eu me lembro do dia em que aprendi ser possível explicar uma série de coisas com a expressão círculo vicioso.
12. Eu me lembro, ainda que não queira, da pompa do Cid Moreira lendo os salmos, embora seu grave seja o grave de Leonard Cohen.
13. Eu me lembro de como os olhos da Tainá são ainda maiores e mais verdes sem óculos.
14. Eu me lembro de não poder esquecer de trocar as marchas do Voyage 83 em que meu avô me ensinava a dirigir.
15. Eu me lembro de que a angustura é o segredo da receita para um bom old fashioned.
16. Eu me lembro das lentes garrafais da Aracy de Almeida quando ela era jurada do Show de Calouros.
17. Eu me lembro do meu tio Régis usando um cabo de vassoura em vez de uma caneta laser para apontar a resolução de polinômios no telão e salvar vestibulandos desesperados.
18. Eu me lembro de almoços feitos de dois pacotes de Pastelina e um refri na faculdade.
19. Eu me lembro de estudar harmônicos no sax, maltratando, a uma só vez, a sesta de minha irmã e os tímpanos dos cães baldios.
20. Eu me lembro de nos mandarem apanhar catapora, caxumba e sarampo com nossos amigos para nos livrarmos de uma vez dessas doenças.
21. Eu me lembro da era em que se podia morrer sufocado com uma bala Soft.
22. Eu me lembro da extensão das madrugadas nos tempos da Hard Working. E que, ao sairmos do ônibus, as manhãs tinham sempre o mesmo cheiro em qualquer cidade.
23. Eu me lembro da luz de outono a tornar todos os contornos mais nítidos num meio de tarde na Plaza San Martín.
24. Eu me lembro de descobrir na literatura um espaço em que ninguém podia condicionar ou condenar meus pensamentos. Eu tinha catorze anos e o livro era Tia Júlia e o escrevinhador.
25. Eu me lembro dos tantos hotéis que meu irmão construiu no Brooklin ao jogarmos Banco Imobiliário. Nem falo de como trancava o México no War.
26. Eu me lembro da noite em que ouvi Naima do John Coltrane e nada mais foi igual.
27. Eu me lembro de barbarizarmos os carrinhos de choque no parque Tupi, com colisões frontais que tiravam faíscas do teto.
28. Eu me lembro do malévolo prazer do professor J. ao gritar meu peso nas avaliações de Educação Física.
29. Eu me lembro de ter tido coragem duas ou três vezes. E medo, por certo, algumas vezes mais.
30. Eu me lembro de que preciso terminar esta crônica, no justo instante em que começo a esquentar.