- Não me lembro por que, na crônica anterior, parei as lembranças onde parei, mas suponho que ia longa a lista e antevi o risco de não conseguir conter novas rememorações. Carlos Leão, arquiteto, escritor e gaiato, ao ler o texto, disse que lembrar era perigoso, que preferia esquecer, o que me fez considerar a existência de uma curiosa zona em que lembramos e esquecemos ao mesmo tempo — por vontade ou não —, uma zona de incompletude, alimentada por eventos fantasmagóricos, por situações cujos começos se borraram, por impressões e sentimentos que permanecem conosco mesmo quando seus referentes materiais já deixaram de existir.
- Não me lembro de sofrer queimaduras com suco de limão na praia, apesar das terríveis manchas vaticinadas pela sabedoria popular.
- Não me lembro de como já fui capaz de guardar os números de todas as pessoas para quem eu precisava ligar, os seis dígitos que tinham de ser discados. Os nossos eram 497564.
- Não me lembro das razões para preferir o Torak ao Falcon. Suponho que, apesar de não ter barba, nem cicatriz, nem olhos de águia, o Torak tinha uma lampadinha cintilante no peito, o que, pensando bem, é um adereço até poético para um vilão. É o que passa, creio, quando alguém é mais sensível ao estético do que ao moral.
- Não me lembro de um show do MPB4 no Gigantinho, mas lembro que meu irmão se perdeu na saída. Houve uma época em que ele praticava bastante o hábito de se perder.
- Não me lembro dos meus primeiros cadernos do colégio, senão da sensação de suas espirais em minha mão esquerda, em meu braço fofo de criança, ao longo das tardes infinitas.
- Não me lembro se tinha treze ou catorze anos quando descobri o sax de Paul Desmond na gravação de Take five. É certo que depois disso a sofisticação passou a ter um som reconhecível.
- Não me lembro de que fim levou a gloriosa placa de fax/modem 14400 comprada a custo na boa e velha Ciudad del Leste. Aquelas madrugadas nos chats do Terra, disso não esqueço.
- Não me lembro mais da mão de certas ruas de Porto Alegre.
- 10. Não me lembro mais do que pedi para o meu pai vender — eu não tinha quase nada — para ficar mais tempo em Buenos Aires, depois das férias de julho de 2006. Sei que voltei na data programada, sem qualquer prorrogação. Mas jurei voltar um dia para morar aqui. Foram preciso apenas dezesseis anos.
- Não me lembro de quando comecei a girar mais e mais vezes o moedor de pimenta sobre a comida.
- 12. Não me lembro do último filme que assisti no Baltimore antes do fim de suas atividades. O fato de haverem erguido um prédio genérico em seu lugar em nada me ajuda.
- Não me lembro de por que deixei de ver tantas pessoas, ou porque elas deixaram de me ver antes disso. Ao pensar no tema, contudo, percebo a utilidade de conceitos pré-fabricados como tempo, distância, mudança de interesses etc.
- Não me lembro de boa parte dos enredos dos livros que amo.
- Não me lembro de ter tido nenhum animal de estimação antes da Joni, ainda que ela não seja a primeira.
- Não me lembro das escalações das equipes campeãs dos mundiais, o que em geral dificulta a conversa com os velhos motoristas de táxi na Argentina.
- Não me lembro da última vez que preenchi um cheque. Culpo tal modificação no sistema financeiro pelo declínio visível na qualidade da minha assinatura.
- Não me lembro de quem matou Odete Roitman (preciso consultar no google para ver como se escreve o sobrenome), mas poucas vezes alguém soube morrer de maneira tão chique quanto Beatriz Segall.
- Não me lembro de muitos anos, de muitos meses, de muitos dias, o que dizer das horas e dos minutos. Queria recuperar o que perdi, mas, se considerarmos com afeto o que resta, há qualquer coisa de gloriosa nas ruínas que nos compõem.