1 – São quase três anos vivendo em Buenos Aires. Fui rico em 2022, magnata em 2023 e pé rapado em 2024. O curioso é que não ganhei ou perdi trabalho. Apenas a vida na América Latina.
2 – No começo muita gente escrevia. Partimos com grande festa e promessas de visitas. Muita gente veio, muita gente não veio. Viajar é caro no continente. Mais a agitação das rotinas.
3 – Por mim o mundo era um lugar em que todos seriam ricos como aqueles gentis-homens dos romances do século XIX, sempre em viagens, em jantas, em óperas e bailes.
4 – Queria era falar de um estranho fenômeno, talvez comum aos expatriados. Tudo é estranho quando nos toca pela primeira vez a estranheza.
5 – Aos poucos se pode ver nossa vida anterior sem nós mesmos.
6 – Não se trata das vidas encerradas que a memória guarda.
7 – É nossa vida, só que não estamos mais lá. E de nossa nova vida aqueles que antes partilhavam da outra nada (ou quase nada) sabem.
8 – Vejo os anúncios dos shows da banda em que toquei por tantos anos. Eles acontecem sem mim. É uma experiência com sabor de morte. É como o país da memória, um lugar divisado com a fantasia, diferente, no entanto, por estar livre de ser uma repetição. É mais como a morte. Vivemos na lembrança dos outros.
9 – Há um dramatismo que não me agrada nos itens anteriores da crônica. Encanta-me a vida que tenho aqui, e coordenar as minhas oficinas de escrita é a atividade, entre as tantas que exerci, que mais me agrada. Tenho a sorte de ter gente que lê e escreve bem demais.
10 – Devia ter conduzido a conversa pelo tema do estranhamento que é ver a vida que segue sem nós em outro lugar. Agora é tarde. Ademais tenho uma impressão que se fortalece de que é melhor desdizer do que apagar. Tudo o que dizemos também diz o seu contrário em potência.
11 – Em outra existência fui professor de pré-vestibular. O final do ano é a época das provas decisivas: ENEM, os vestibulares das federais.
12 – As preparações, os simulados, muitos de meus ex-colegas continuam lá. Era uma época de muitos cafés e conversas nos intervalos. Que talvez sigam acontecendo.
13 – Livres do looping que depende de mim. Gosto de pensar que é saudável para a memória ter de lidar com a mudança do mundo, de um mundo que segue aberto.
14 – Aberto o suficiente para que se possa ter uma nova vida, como temos aqui. E que um dia seguirá sem nós, sem as gatas, sem a propina que deixo para a chica sobre a mesa do café.
15 – Café a preço europeu. Apenas a vida na América Latina.
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