- É madrugada na capital federal. Desde o fim de semana, uma pergunta percorre as redes locais: sete da manhã de uma terça-feira é muito cedo para um fernet?
- Em 1995, na final do mundial de clubes entre Grêmio e Ajax, meu irmão combateu o nervosismo com uma garrafa de uísque às oito da manhã.
- Os tradicionais piqueteiros, que costumam fechar quase todos os dias a 9 de julho para protestar contra o seu próprio governo, anunciaram que vão parar a cidade depois de ver a estreia da Argentina na Copa do Catar. Coerência. Não se pode parar o que já está parado.
- Meus vizinhos acordaram cedo. Alguns cânticos sobem pelo poço de luz. Por sorte os anos consumiram todas as timpanocidas vuvuzelas. São apenas gritos de fernet.
- Messi está em toda parte. Em pacotes de salgadinho, latas de refrigerante, bazares, secundando eletrodomésticos, vendendo camisetas. Uma foto de seu sacrossanto calcanhar, com um possível inchaço (depois desmentido), alegrou a imprensa ao longo do feriado que antecedeu a estreia.
- Quando o jogo começa, não demoramos para notar que a transmissão está uns trinta segundos atrasada. Os vizinhos gritam antes, muito antes da conclusão das jogadas, e é como assistir a um compacto que não se pode acelerar. A frustração só não é maior, creio, graças ao excesso de fernet, que faz com que eles comemorem escanteios como se fossem gols, devolvendo-nos algum suspense, distraindo-nos, outra vez, da mera e assombrosa atividade de existir.
- O governo anuncia que depois da Copa voltará o combate à inflação. Prioridades.
- A algaravia da vizinhança é explicada pelos três gols anulados pelo VAR, quase em sequência. Fui contra o uso do recurso eletrônico desde o início, porque como Nelson Rodrigues, acho que o videotape é burro, vai contra a incontrolável fluidez do real. Ademais, o erro, o logro, o inusitado uso de um golpe de mão borra ainda mais os limites entre o jogo e a vida.
- No início do segundo tempo, os árabes viram a partida, em cinco minutos. A capacidade de xingamento dos argentinos se estende vertical e horizontalmente, ou, de maneira mais clara, na f forma de amaldiçoar e no conteúdo das ofensas. Sobrou até para o Ali Babá.
- Meu irmão não viu a derrota do Grêmio, voltou a si somente depois das penalidades. Às vezes é o melhor, quero dizer aos meus vizinhos. Mas eles não hão de querer ouvir isso de um brasileiro.
- As ruas ainda estão vazias quando saio. As bandeiras ainda pendem das sacadas e nunca me acostumo com a precisão do azul do céu que os panos celestemente reproduzem. Dois jovens passam pela calçada oposta, uma garrafa verde os defende.
- Sete da manhã talvez seja cedo para um fernet, mas em duas horas já pode ser aperitivo.