1- O som do tráfego muitas vezes parece uma torneira que alguém abre e esquece de fechar, senão tarde da noite.
2 – Aqui costuma passar perto das seis da manhã. Havia silêncio e então, de súbito, o gorgolejar de coletivos, motos desreguladas, carros e mais carros que vêm dos subúrbios.
3 – Em Porto Alegre tinha a impressão de um abrir mais suave da torneira. Em Buenos Aires é a mão de um rabugento, raivoso pelo despertar.
4 – De todo modo, a água do tráfego é uma água estancada, de encanamentos entupidos, uma água podrida. Como há muito me parecem as relações humanas, consigo mesmas e com o mundo.
5 – Horacio Ferrer, meu letrista favorito de tangos, parceiro de Piazzolla, entendeu o fundamento deste desperdício.
6 – Ciudades, fundadas para odiar.
Ciudades, tan altas, ¿para qué?
Ciudades, cadáveres de pie.
Ciudades, al polvo volverán.
7 – Antes da torneira se abrir é mais o ruído dos perros e de umas surpreendentes caturritas. Às vezes me faço perguntas estranhas (ou talvez comuns), digam-me.
8 – Por que certos bichos nos são tão simpáticos? Mesmo barulhentos.
9 – Uma cumbia soa ao longe. Não sei mais o que soa em equivalência no Brasil.
10 – Uma época tive um vizinho que disparava vanerões fuleiros às sete da manhã. Não sei se mateava no fosso de luz, mas roncava aquela cuia.
11 – O curioso universo que construímos com os ouvidos. A torneira segue aberta. É dar-se conta que a tosse dos escapamentos é menor horror que a voz de governantes trogloditas.
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Foto da Capa: Gerada por IA