1 – Houve um tempo em que o carnaval regulava o início das aulas. E havia também esses anos de férias infinitas em que o carnaval caía em março. Chegava-se até a cansar da vadiagem. Eu ansiava pela lista de materiais. Gostava muito dos pacotes de papel ofício, das caixas novas de lápis de cor. Não sei se custavam a fortuna que saem agora. Coisas que nossos pais pagaram sem que tivéssemos bem a noção disso. Mas o que eu queria dizer é que, já professor, um carnaval assim tardio como este de 2025, vinha ilhado, em uma espécie de arranca e para, que não é um desastre, mas traz certa tristeza ao ano que começa. O fato é que com o apertado calendário letivo, fevereiro perdeu grande parte de sua delícia.
2 – No tempo dos carnavais continentais, meu irmão era um fã do desfile das escolas do Rio. Varava as duas noites avaliando os quesitos, e tinha uma raiva, digna das mais assanhadas vanguardas, das agremiações clássicas. Em especial da Mangueira. Ele achava — antes de haver a expressão passar pano — que a Globo fazia vista grossa às falhas da verde-rosa, que os comentaristas não mereciam nenhum respeito.
3 – Encantava-o a pirotecnia e a ruptura. Em especial na comissão de frente. Se alguma escola optava por usar a velha guarda, por exemplo, ele se punha furioso. Ninguém tem coragem de dar nota baixa para os velhinhos. Era um Breton, um Tzara, um Marinetti de onze anos.
4 – Nessas férias estendidas que se pegavam ao carnaval, ele arrancava em janeiro a decorar os sambas — acho que na época se conseguia os cds nos camelôs.
5 – Por sua influência, cheguei a simpatizar com a Mocidade, Viradouro, Grande Rio, todas aquelas que a seu tempo traziam avanços tecnológicos. Apesar de ser função do mais velho guiar os irmãos nos caminhos da vida (ilusão incutida por certa responsabilidade delegada — e que nunca se realiza), aqui eu seguia meu irmão.
6 – Era preciso valorizar mais os carros alegóricos, em especial os com estruturas móveis, e acabar, se possível, com setores aborrecidos, arcaicos (palavras que acrescento, como a ala das baianas).
7 – Não sei como me dispersei do carnaval carioca. Mas está a saudade de como uns dias depois dos desfiles acompanhávamos juntos a apuração das vencedoras. A gente nunca sabe bem como as coisas terminam antes que elas já estejam petrificadas nos cristais da memória.
8 – Há um silêncio de feriado aqui em Buenos Aires. É possível até ouvir o latir esparso de alguns cachorros. Nesta terça-feira gorda, que ainda deve estar recebendo a última escola na transmissão da Globo, que não vejo há três anos, desde que nos mudamos, revejo os olhos injetados do meu irmão e aquela altivez que portam os que levam consigo os louros da missão cumprida. Depois era ir dormir e ainda esperar o lento recomeçar do movimento do mundo.
9 – Pois naquele tempo de glória suprema das férias escolares não se voltava nunca na quarta-feira de cinzas. Era só na outra segunda.
10 – E tudo começaria bem, desde que não ganhasse a Mangueira.
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Foto da Capa: Reprodução do YouTube