1- Meus livros estão espalhados em cinco lugares diferentes, em três cidades, e, por temas de mudança, no momento desta crônica, tenho comigo apenas uma caixa com os necessários para arrancar este semestre das oficinas de escrita.
2- Seguro que o Kindle e o leitor de epub me ajudam, promovendo uma saudade desconhecida dos antigos: antes se estranhava matéria e conteúdo, hoje, trata-se de uma alienação sensorial.
3- É das estantes e sua ordem — que só eu entendo — de que sinto falta. Do creme poroso de certas capas, do colorido demodê de outras. Há uma paz entre os livros que só os amantes do papel podem entender.
4- Minha coleção de poesia está no apartamento de um casal de amigos no Caballito. Meus livros incorporados nestes três anos vivendo em Buenos Aires, num depósito (a palavra aqui é baulera) em Ezeiza. E toca-me uma doce futilidade que seja este um problema capital para mim enquanto o mundo colapsa entre magnatas, tiranos e populistas. Cresce a violência social nas ruas e hoje haverá um novo protesto contra as baixíssimas pensões dadas aos aposentados argentinos.
5 – Como diz o grande poeta Joaquin Giannuzzi:
Oprimido pelo tabaco e pela cultura
e convertido num engano por sua própria classe
estava esperando a revolução
pela desnuda, terrível ação dos outros lá fora.
Mas por detrás dos óculos
protegido do vento social onde toda culpa
entra em crise com suas razões apodrecidas,
decidiu que a mudança acontecia em pequenas mutações
permanentes do céu e do pó,
no giro da colher na taça de chá,
nas decepções periódicas do fígado,
na morte de pai e das moscas. (…)
6 – Truculência e desencanto. Duas palavras recorrentes neste século.
7 – Há alguns livros que amo em Canela, onde vivemos durante uma parte da pandemia. Há um milhar de livros no meu antigo apartamento em Porto Alegre.
8 – Não falarei dos discos.
9 – Na novela que deu origem ao filme Blade Runner, Sonham os androides com ovelhas elétricas, o protagonista, Rick Deckard, vive a certa altura um dilema moral que é sentir-se atraído por uma androide, e talvez nutrir por ela uma empatia, que é justamente o elemento utilizado por ele para determinar quem é uma réplica ou não. Para Deckard, até então, as criaturas humanas eram empáticas às criaturas vivas, pessoas e animais. Mas é seguro que podemos amar e nos ocupar das coisas em nossa vida, como se elas tivessem um quê de entes, de seres animados. Animados por nossos afetos.
10 – Este estranho objeto, parte celulose, parte tinta, parte cola e costura, parte símbolo e transcendente saída.
11 – Parte aquele sonho do Zé Rodrix.
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Foto da Capa: Freepik