1 – Anteontem foi aqui o Dia da Memória, com uma significativa manifestação na Praça de Maio pelas vítimas do sangrento regime militar argentino.
2 – Nas redes, as reações de nosso tempo: Contestar o número de desaparecidos, defender o golpe como um contragolpe, bravatas de deputados e jornalistas radicalizados, que de seus polos criam uma algaravia cujo efeito é um só: acachapar as complexidades, dar a todas as vozes o contorno leviano de um capricho, uma espécie de armagedão que termina com o dia, até que a manhã seguinte venha trazer novas notícias do câmbio, dos preços, do jogo da seleção.
3 – No entanto, o rescaldo disso é uma diminuição de matéria humana. A começar pela simbólica.
4 – Há muito que já não é mais possível distinguir os discursos públicos. É como se todos fossem modelados por uma mesma agência de marketing, que agora também parece se ocupar de outras falas sociais e até íntimas.
5 – René Girard acreditava que todos nós, pelo preço do convívio em espécie, estávamos sujeitos a algum tipo de comportamento mimético. Que nossos desejos e nossa violência se espelhavam e escalonavam em um processo competitivo e sutil, em que haveria progressivamente mais risco quanto mais indiferenciados dos outros nos tornássemos.
6 – Há qualquer coisa de grande perversidade quando forças que defendem muitos aspectos da ditadura de 1976 acusam seus adversários de tentar silenciá-los, como os militares de então fizeram com seus opositores.
7 – Trata-se de redução da matéria discursiva. É uma competição pelos mesmos monopólios: o da verdade, o de ser vítima, o de ser inocente.
8 – Monopólios que não condizem com os fatos, nem com as múltiplas facetas do real.
9 – Nasce daí a aversão a tudo que for complexo, variegado, especulativo.
10 – Há uma falta de paciência por todos os lados, o que é um signo da escalada de violência proposta por Girard. Em sua teoria, no entanto, a comunidade pode encontrar paz e comunhão parcial em um bode expiatório, que dará aos culpados da violência uma chance de voltarem a ser inocentes. O problema é que já não há mais espaço para o sacrifício simbólico, porque o lugar de inocência pertence só a mim ou aos eleitos de minhas agremiações, de minhas identidades. O que continua sendo uma chamada ao conflito.
11 – No caso específico do Dia da Memória, me parece a mesma busca por diminuição do campo simbólico, não por aumento, como pode parecer graças a estratégias relativistas ou revisionistas. Que criem um novo dia, então, preservando o que já existe. Mas não creio que haja disposição para aumentar nada.
12 – Nenhuma ambiguidade, nenhuma dúvida, nenhuma concórdia, nenhuma concessão.
13 – A história é conhecida. De redução da matéria simbólica à redução de matéria humana.
Todos os textos de Pedro Gonzaga estão AQUI.
Foto da Capa: Rede Mercocidades