1. Dias depois da partida entre Suíça e Camarões ainda penso na rara oportunidade que teve Embolo, atacante suíço, de origem camaronesa, de ser o primeiro jogador na história das copas a fazer um gol contra o próprio país, gol, diga-se de passagem, que ele não comemorou.
2. Passamos a vida inteira tentando criar um lugar para chamarmos de nosso, um lugar de pertencimento, um lugar que eventualmente nos escale para alguma coisa. Mas podemos trocar de países, ser perseguidos e expulsos, aceitar oportunidades ou nos submetermos às escolhas dos outros.
3. Mais fácil talvez fosse aceitarmos que nenhuma cidade, nenhum país será nosso de fato, estamos apenas de passagem afinal, mas sabemos haver qualquer coisa de inumana em prescindir de vínculos, quaisquer vínculos (e os nobres moradores da outra margem do rio das prisões humanas — que tenham boa sorte com sua impermanência).
4. Alguns de nós, por uma questão de magnitudes, elegerão uma cidade (um país é uma abstração materializada numa bandeira). Terão lido, por exemplo, um romance que se passava em Paris quando ainda estavam numa idade suscetível e passarão a vida sendo parisienses, mesmo morando numa cidade com menos luzes. Outros, moldados novaiorquinos pelos filmes de Woody Allen, percorrendo uma cidade em que nunca estiveram de corpo presente, supondo cafés e restaurantes preferidos (eu, por mim, fico com aquele esfumaçado recinto que aparece ao início de Manhattan).
5. Haverá também os apaixonados pela história antiga, moradores frustrados de Porto Alegre, como eu, sacolejando num Otto Niemeyer, ou de qualquer cidade percorrível, quando podiam ter vivido em Alexandria, Halicarnasso, Constantinopla.
6. A terapia de vidas passadas talvez arranque daí seus apelos.
7. E há também os que preferem sítios imaginários, Manuel Bandeira — uma cidade tem de existir mesmo que não exista, como perspectiva referencial, como ponto de partida e de retorno. Ítaca para Ulisses. Santa Maria para as personagens de Onetti.
8. E Embolo depois do gol, entre duas nações, quem sabe igualmente importantes para ele. Mas há que fazer o que um atacante precisa fazer.
9. Noto, em mim, no que li, nas pessoas que conheci, também a força do mito de origem, a terra, a cidade com seu quê de recordações materiais, de águas infantis, de idas ao colégio, a comunidade dos parentes naquele país em que estão todos vivos, levando nos corpos os indícios materiais de nossa identidade.
10. “Para nascer, pouca terra, para morrer, toda a terra. Para nascer, Portugal: para morrer, o mundo”, dizia Vieira.
11. A verdade é que gostaria de poder criar e viver numa cidade planejada (um país precisa de mais verbas e paisagens), uma cidade como naqueles simuladores de computador. Há, porém, graves deficiências nesses jogos, como nas cidades reais, da parte dos programadores. Creem que uma cidade é sua infraestrutura básica e que luxos são arranha-céus; lojas ou estatuas equestres. Árvores para eles são necessidades, pessoas, meras fontes de impostos. Diversão: times de futebol.
12. Para mim luxo são cafés de esquina, bancas de revista, livrarias, coisas que não se podem agregar nas cidades digitais. E também parques pequenos, do tamanho de uma quadra, espalhados pela cidade. Na minha cidade planejada o sistema de transporte seria faustoso, todo sobre trilhos: trens, metrôs, bondes e funiculares. E haveria uma costaneira, de preferência com um mar, mas poderia ser um rio, desses que não deixam ver sua outra margem.
13. No mundo imperfeito, imperfeito até demais que nos coube, cidades e nações se tornam cada vez mais impraticáveis, cada vez mais restritas em suas oportunidades por nossos hábitos de absorver alguns e excluir quase todos os outros. E absorver não é apagar, não é suavizar a diferença, como rezam tantos credos.
14. Não sei o que faria no lugar de Embolo. Sua situação se me escapa em todos os aspectos. Mas sua figura me pareceu muito digna. E às vezes isso é razão suficiente para fundar um novo país, onde seja possível comemorar e gol e perder ao mesmo tempo.