1- Nunca estive no Japão. Conheço das paisagens japonesas o que as gravuras dos mestres e os filmes foram capazes de me oferecer, o fantástico monte Fuji, uns rios por entre montanhas cobertas por bambuzais.
2- Também não poderei, acima de tudo, estar no Japão de há novecentos anos, com seus xogunatos, seus violentos dilemas políticos, suas cortes em que a poesia (como na China da Dinastia Tang) era um passaporte para os melhores salões, para os cargos de confiança, ai de mim, nasci sempre tarde e no lugar errado.
3- E parece que por uma nova interação entre ondas neuronais e algoritmos, minhas telas se inundam com o imagem do famoso monte de Hokusai na manhã portenha.
4- Uma cultura de elegantes ideais estéticos, como o gosto pela contenção, por compreender o quão triste é o caráter fugidio de todas as coisas, por uma alta suscetibilidade à passagem das estações do ano, com um especial destaque às cerejeiras em flor na primavera e aos bordos a perder outonalmente suas folhas mais vermelhas que um incêndio.
5- Posso, contudo, numa forma de consolação, contemplar o mundo nipônico por meio da famosa antologia do filólogo e poeta Fujiwara no Teika, compilada no século XIII: Cem poetas, um poema de cada um. Apesar das divergentes traduções, da complexa conversão dos ideogramas — com diferenças marcantes nos resultados finais —, o estado de espírito evocado por esses versos quase sempre sobrevive.
6- Não se trata bem de entrarmos numa outra forma de pensamento. Também não é um mero apelo ao sentir ou a um despertar de nossas sensibilidades.
7- É um estar sem estar.
8- O mundo parece ralentar seus movimentos, a água faz-se mais sólida, as folhas e as flores caem vagarosas, a luz da natureza adquire uma constância de estúdio fotográfico, e, de algum modo, passamos a habitar integralmente a realidade lírica.
9- E num relance a perdemos.
10- Uma iluminação compacta, um universo instantâneo. E depois, outra vez, a voragem da vida, o emplastramento dos dias, a inconstância carniceira, amiga do pó, do vento, do nada.
11- A conhecida vitória das atribulações.
12- Até que vem o próximo poema da antologia, o do jovem xogum Minamoto no Sanetomo, que faz com que o acompanhemos à margem de um rio, para vermos o retorno de um pequeno barco pesqueiro. Seu lamento nos lembra de quão efêmeras são as tréguas dos afazeres, convocando-nos a habitar o momento retratado a ponto de fazê-lo nosso, pela eternidade de cinco versos.
13- Se o mundo pudesse apenas
Manter-se sempre assim,
Alguns pescadores
Cruzando num barco a remo
Em direção à margem do rio.
Manter-se sempre assim,
Alguns pescadores
Cruzando num barco a remo
Em direção à margem do rio.
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Foto da Capa: Gerada por IA.