1- Nos milagrosos tempos do Plano Real, com o dólar quase um por um, chegava a internet como um recurso mais acessível, ao menos para quem estava na universidade e podia conseguir uma linha dedicada, no departamento Vortex, que oferecia a assombrosa conexão de 14k, alcançável somente com as poderosas placas trazidas do Paraguai.
2- De modo que quando comecei a navegar (ainda concorria o termo surfar) na rede, não havia nem as páginas www.
3- Era tudo no sóbrio DOS, com seu prompt de comando que lembrava os computadores soviéticos capazes de disparar ogivas nucleares nos filmes distópicos da Sessão da Tarde.
4- Na conjunção do Real com o Vortex, havia o paraíso da CD Express, uma loja americana em ambiente DOS que enviava até para o Brasil. Nesses tempos idílicos, a taxa sobre importação só era acionada após os 100 dólares.
5- Foi assim que montei uma parte significativa, hoje há muito perdida, dos meus discos de jazz.
6- Tornei-me insuportável, metido e bobalhão, graças a este hiato em que, com cem reais, podia-se comprar de seis a oito CDs fundamentais.
7- Em um dos lotes havia: The sidewinder, do Lee Morgan; Ballads, do Coltrane; Speak no Evil, do Shorter; Go, do Dexter Gordon; Birth of the cool, do Miles Davis; e um que peguei por acaso e que viria a ser um dos discos da minha vida: A slice of the top, do Hank Mobley.
8- Anos depois, nas conversas que tinha com meu amigo André de Godoy Vieira, antes de um curso que fazíamos com o professor Dacanal, era aos discos do primeiro FHC que eu voltava.
9- A slice of the top. Ouçam este disco.
10- O tempo feriu o Real, e um dia, já sem aparelhos de CD, prestes a deixar Porto Alegre por Canela, me desfiz de boa parte da coleção. Também retomei os vinis, que ainda são, para mim, a melhor maneira de ouvir música. O meio é a mensagem, como dizia aquele McLuhan, que li nos tempos do Vortex.
11- Aqui em Buenos Aires há muitas lojas de CDs e vinis, mas já não sou o magnata jovem com moeda forte.
12- Ademais os livros, com preço médio de 160 reais, levam-me todos os meus poucos cobres.
13- Se pusera A slice of the top para tocar, arranquem direto de There’s a lull in my life.
14- Faço isso agora, enquanto me volta o café quase ordinário em que o André e eu discutíamos a importância da flauta lírica que o James Spalding aporta a essa gravação.
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Foto da Capa: Hank Mobley / Reprodução