1. Crianças gritam de uma sacada no outro lado da avenida. Não as vejo, mas sei pelo eco formado pelas duas fileiras parelhas de prédios, que fazem da General las Heras uma espécie de cânion, que estão quase alinhadas à minha janela. Em outra cidade podia ser uma emergência, mas nesta, de retângulos suspensos improvisados como pátios, deve ser apenas a alegria estival.
2. Sempre quis escrever alegria estival.
3. Espicho o pescoço até o começo da vidraça, confirmo minha suspeita. Alguém instalou uma daquelas piscinas de plástico no justo espaço disponível, com seu azul claro típico da infância do mundo, os verões que o corpo nunca mais esquece.
4. Para os pés, o fundo liso que sempre parecia coberto de limo (mesmo quando não estava); para as pernas, a água morna senão quente sob o sol de Tramandaí; para os braços, bem, os braços não lembram de nada porque era impossível se afogar ou descrever esportivas braçadas naquele exíguo quadrilátero, cheio com a parentada e agregados e urina.
5. Havia também a organização dos canos de alumínio e seus encaixes, uma engenharia que ficava a cargos dos mais velhos, minha prima Titão e eu.
6. A primeira lição de física: como esvaziar o interior com aquela espécie de cano em forma de U desnivelado, problema que logo tocará ao pai na sacada em frente.
7. Papi, papi, gritam as duas crianças, vení, vení.
8. Para o adulto que me tornei, a resposta ao monumental calor portenho será ligar o ar da sala. O que perdemos da infância são as soluções humildes para os desconfortos físicos. Aplacar a sede com Tang, o tédio com um ioiô, o calor com um tanquinho morno.
9. Talvez isso explique por que o corpo preserva o que preserva: o cheiro de Spectraban na água, a areia vinda de algum lugar mesmo quando não há praia, a ardência turva dos olhos abertos nos possíveis mergulhos.
10. Dizem que quando nos tornamos pais, a simplicidade da vida se renova por meio dos filhos, ao reviver com eles essas fases singelas, reentrando nessas piscinas havia muito não frequentadas.
11. Nada sei disso, por ora. Talvez um dia descubra, talvez não.
12. Pelas dúvidas, mantenho a janela ainda um tempo aberta para deixar chegar, entre buzinas e fuligens abrasivas, a algazarra eterna das crianças.