1. As encantadoras formas da modéstia.
2. Por exemplo. Recolhi da caixa de saldos de um sebo um Breve diccionario etimológico de la lengua española, em uma bela encadernação em courino verde, com 630 páginas em letras miúdas. Fiquei a me perguntar como seria o Normal diccionario, que dirá o Largo. E tem gente que crê mudar o mundo em um vídeo de 30 segundos.
3. Por exemplo. Um senhor muito idoso, os dentes escuros, que cuida de uma loja de ferragens perto do parque Las Heras. Ao lhe agradecer por ter me explicado com infinita paciência como resolver um problema no quadro de luz, ele me disse, yo no sé nada, maestro.
4. Por sorte sabia. Suponho que tenha me tomado por um intelectual, com meus óculos, físico sedentário, careca, barba e o breve diccionario nas mãos. Mas só me dei conta disso depois. Ainda volto para lhe dizer que eu também não sei nada, embora seja professor.
5. Ou quase nada. Folheando o compêndio do modesto Juan Corominas me alegro em descobrir a origem de muitas palavras, quase todas elas também presentes no português. No Brasil, para quem tem ou quer contrair esta paixão, há o ótimo e divertido livro do Deonísio da Silva, De onde vêm as palavras.
6. As que vêm do latim são bonitas, mas não muito surpreendentes. Tem meu coração as que chegaram do árabe, ou dos povos originais, assim também as de origens obscuras ou impossíveis de rastrear. Ademais, se não estou consultando alguma coisa, abro dicionários ao azar, esperando ver a palavra que a sorte me lança.
7. Num modesto café já perto de casa, abro o livro na página 76. Por este fenômeno que alguns chamam de coincidência e outros de desígnio, salta-me aos olhos o verbete AZAR. Descubro ser de origem árabe. Zahr significa flor e, por derivação, um jogo de dados que trazia uma flor pintada em uma das faces. De perder no jogo da flor, vem a ideia de má sorte, de lance desfavorável. É quase um poema pronto, penso, ver na adversidade uma flor. Fecho o livro verde. Afogo meus sentidos no tráfego ruidoso, volto a ver a flor, depois o senhor da loja, seu sorriso há muito consumido por cafés e cigarros. Por ora está bem.
8. Há coisas que só nos alcançam quando temos a modéstia de nos sabermos ignorantes, incompletos, e daí curiosos e um pouco mais sábios com o tempo. Daí que aprender uma coisa nova, para mim, é sinônimo de estar vivo.
9. Chegam finalmente duas medialunas e um café que de tão modestos, de tão humildes, de tão tristes quase valem uma nova página vindicando a soberba.