1. Tive um amigo de infância que possuía memória fotográfica. Era capaz de lembrar de páginas inteiras dos livros-texto do colégio, sem esforço, olhando para frente — o que devia ser um modo de olhar para a tela dentro dele. E ainda que a ciência hoje desacredite tal tipo de prodígio, ou tente reduzi-lo a um nome pomposo como memória eidética, um lembra do que viveu, dos trabalhos que fez em tardes ingênuas, do que era andar com uma espécie de gravador humano ao lado, contando que ele sempre estaria ali, incidindo no depois tantas vezes repetido equívoco de confiarmos que as coisas nunca quebrarão cedo demais.
2. Mas.
3. Não preciso dizer que éramos ótimos nas provas em dupla. Eu lia os enunciados e pedia a ele que recuperasse as páginas sobre o assunto. Parecia-me curioso que meu amigo, com essa memória, penasse, no entanto, na hora da interpretação. Eu ainda levaria anos para ler o conto Funes, o memorioso, do Borges, para saber que a relevância é filha do esquecimento, como a habilidade para fazer destaques e sumarizações: se todas as coisas vividas estão vividamente presentes, como selecionar o que importa? Era aí que começava a minha parte do trabalho, que eu sentia como plenamente substituível, um privilégio imerecido que ele me estendia, o que não deixa de compor uma boa definição do que é a amizade.
4. Ele era um cinegrafista capaz de registrar todo o material bruto da realidade; eu, o sujeito que na sala de montagem editava e dava um sentido para o filme.
5. Se muito do que somos é aquilo que a criança que fomos foi, não estranho ter vivido uma vida de intérprete: músico, tradutor, professor, poeta. E é também desta parte visual, lá confiada a meu amigo e de todo atrofiada em mim, de que muitas vezes me ressinto. Há certos fins de tarde sobre o Parque Las Heras, uns tons de bronze do Prata, certas veredas que parecem feitas de gelo, que eu queria guardar com a máxima precisão, mas só consigo reconhecer essas cores quando elas se repetem, padronizadas, ou se as registro em palavras para mais tarde redescobri-las pela leitura.
6. Em um livro do diretor Jonas Mekas, Destellos de belleza, que não creio, infelizmente, esteja traduzido no Brasil, há uma série de anedotas de sua vida em meio a artistas e intelectuais na Nova Iorque das quatro últimas décadas do século XX. Num dos episódios, ele fala da obsessão do poeta Allen Ginsberg por registrar todos os instantes da vida com uma câmera VHS, na época uma novidade.
7. — Isto é muito importante para a história, todos os detalhes deste quarto devem ser registrados — disse o poeta.
8. Mekas conta que, dias depois, numa viagem, roubaram a câmera de Ginsberg.
9. Nossas câmeras, cedo ou tarde, as levam.
10. Às vezes sonho com meu amigo. Ao acordar não lembro dos detalhes.