- Ouvi um ditado aqui, atribuído aos húngaros (é sempre bom creditar sabedorias a línguas em que será difícil comprová-las), que diz mais ou menos o seguinte: O diabo nos quer com os pés frios.
- Os pensamentos de morte costumam nos atacar quando estamos deitados. As angústias, as derrotas — minúsculas e capitais —, os fracassos, os atrasos, as dívidas que nos servilizam ao sistema financeiro (a tímida vitória de pagarmos as contas até o mês que vem), nos alcançam quando estamos com os pés frios, parados, congelados, mesmo sob as cobertas quentes. São o diabo (um modo tradicional de chamarmos o adversário dentro de nós), ainda que esse nem sempre nos apresente suas credenciais.
- Esquentar os pés. No chuveiro até cantamos quando os pés ardem. Nos corredores, é possível encontrar alguma leveza ao ensaiar uns passos de dança.
- E caminhar. Caminhar permite que a mente se organize, que trabalhe a nosso favor, convida os olhos a se voltarem para fora, para o momento presente, para a paisagem viva, sem teto, cujos limites cambiantes surpreendem ou confortam. Por isso caminhar na esteira não produz o mesmo efeito mental, ao menos para mim, de estar ao ar livre. E gosto, em especial, das caminhadas urbanas, de olhar para os prédios, para as vitrines, para as pessoas, para os perritos vagabundos.
- Caminhar em Buenos Aires, talvez a mais plana das cidades do mundo. Não raro percorrermos dez quilômetros por dia, sem confrontarmo-nos com lombas como a da Lucas, da Ramiro, ou com disfarçadas subidas, perversas e lentas, como as da Protásio ou da Nilo.
- Enquanto caminhamos, o diabo só consegue sussurrar.
- Caminhar à noite, de madrugada. Tendo a lua por testemunha e o vento frio a varar as ruas do centro e da Recoleta, e não ter tanto medo. Da vida, da morte, de ser. Descobrir que as floriculturas das esquinas não fecham de madrugada, contemplar as luzes azuladas dos kioskos se derramarem sobre o passeio, cruzar com gente de todas as idades que talvez estejam justamente a fugir de seus diabos. Não raro há um buldogue, um poodle ou um dálmata (os argentinos mantêm, ao que parece, uma moda canina de gosto oitentista), dispostos a arrastar seus donos para longe das garras do cramulhão.
- Uma cidade é uma cidade se é possível percorrê-la a pé.
- Talvez as ruas aqui não sejam tão seguras quanto agora me parecem: levo a vantagem da ignorância dos que ainda vivem encantados. Mas há bastante gente a flanar, mesmo depois das duas da manhã, e penso que os demônios portenhos ainda terão de esperar um tempo até todos esses pés pararem.
Buenos Aires, Hora:Zero — 19
Os pensamentos de morte costumam nos atacar quando estamos deitados
Pedro Gonzaga (1975) é tradutor, poeta e escritor. Doutor em literatura pela UFRGS, com diversas publicações, desenvolve há anos trabalhos com turmas de escrita criativa, voltadas para o público jovem e adulto. Foi cronista dos jornais Zero Hora e Estado de São Paulo. Natural de Porto Alegre, vive atualmente em Buenos Aires, de onde escreve a coluna Buenos Aires, Hora:Zero.
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