- “Todas as coisas feitas por mãos humanas são mais ou menos sagradas”, diz o circunspecto especialista em espadas japonesas, apontando, ato contínuo, para uma projeção com lâminas forjadas à maestria, a um só tempo sublimes e letais, que não sei como vim a assistir no Youtube.
- Absorto, acabo acompanhando a palestra por mais meia hora. E assim o dia começa com armaduras coloridas, muitas delas semelhantes a exoesqueletos de estranhos insetos, e eu mais uma vez atrasado por um tipo de curiosidade que tantas vezes me afligiu:
- A curiosidade por aquilo que eu jamais desconfiaria de antemão atrair a minha curiosidade.
- Durante um tempo, acreditei que tal fascinação tivesse a ver com uma necessidade profissional, é preciso conhecer os mais variados afazeres humanos para escrever sobre eles, mas hoje admito que é um tipo de curiosidade veleidosa, que se encanta por assuntos inesperados, como carburadores de carros clássicos, velas de embarcação, os variados tacos usados no golfe. O que me espanta, hoje, é perceber que tais curiosidades, antes mobilizadas pelo mundo, erguidas por alguma conversa casual, agora sobrevivam apenas em cálculos digitais de máquinas programadas para saber o que somos, do que gostamos, o que pode nos surpreender.
- E logo sinto saudades das lojas de disco e das livrarias, lugares feitos para a surpresa de encontrar o que não tínhamos como saber querer. Lá trabalhavam pessoas que entendiam de nosso gosto a ponto de nos sugerir obras que jamais suspeitaríamos buscar.
- Uma das alegrias portenhas é ainda haver livreiros desse tipo, que entendem a razão de ser de sua profissão.
- Abro o computador, mas meus olhos estão aferrados à máquina de escrever Continental aqui ao lado, e acaricio sua fria densidade, com a devoção que merecem os itens sagrados. Depois reparo no pequeno leão de bronze, também posto sobre a mesa, originalmente feito para conter livros numa prateleira, agora convertido num peso de papel, patinado pelo tempo, com uma das patas apontando para o firmamento cerrado do teto.
- As coisas feitas por mãos humanas são sagradas. Das divindades simples, como uma lapiseira ou o papel que envolve o band-aid à espera do lixo, aos ídolos da morte, como as espadas dos samurais, ou as bombas sobre o Japão.
- São o que somos — as nossas coisas, extensões, petrificações de nossos humores, de nossa violência, de nossa vanidade, de nossa precária glória ligeira.
Buenos Aires, Hora:Zero — 23
As coisas feitas por mãos humanas são sagradas. Das divindades simples, como uma lapiseira ou o papel que envolve o band-aid...
Pedro Gonzaga (1975) é tradutor, poeta e escritor. Doutor em literatura pela UFRGS, com diversas publicações, desenvolve há anos trabalhos com turmas de escrita criativa, voltadas para o público jovem e adulto. Foi cronista dos jornais Zero Hora e Estado de São Paulo. Natural de Porto Alegre, vive atualmente em Buenos Aires, de onde escreve a coluna Buenos Aires, Hora:Zero.
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