- Em outro lugar, já disse que só assumo o ofício de poeta na hora de preencher as fichas nos hotéis, para promover algum espanto nos atendentes. Espantoso, no entanto, é haver ainda de preencher a ocupação do hóspede, como se o fato de alguém ser astronauta, carpinteiro ou geneticista pudesse garantir de antemão algum tipo de paz ou guerra para o estabelecimento.
- Um traço infalível da humanidade é a permanência da estupidez: Mesmo depois do mundo do crédito e do trabalho ter mudado, segue lá a ficha que ninguém quer preencher.
- Sabotador de burocracias, eis o único mister digno de nosso tempo. Porque um dia nos prometeram que a informática eliminaria todos os entraves, formais e esdrúxulos, enquanto seguem pedindo o nome de nossos pais, como se a família Gonzaga tivesse condados para garantir meus luxos orientais. De concreto, como em qualquer utopia, sobreveio apenas o desencanto. E uma nova burocracia: senhas e contrassenhas em três alfabetos — e com maiúsculas —, fotos de barquinhos, bicicletas e sinaleiras como comprovantes de que não somos robôs, tudo para desaguar no inegável, digital e vermelho prazer das máquinas: fazer brilhar nos dispositivos senha incorreta. Não bastasse isso, há ainda a espúria e enervante união da tecnologia com as operadoras de telemarketing, uma espécie de fim da civilização que antes tinha no telessexo um limite supostamente intransponível.
- Quando notei que falar em versos ou dizer que era poeta não funcionava para a nova burocracia digital, lembrei das vanguardas.
- Mesmo um século depois, quem consegue entender os dadaístas? Fui atrás daquele manifesto de Tristan Tzara, seguramente burlador de algoritmos, ontem e agora: Dadá é a nossa intensidade: ergue as baionetas sem consequência a cabeça samatral do bebé alemão; Dadá é a vida sem pantufas e paralelas, que é por e contra a unidade e decididamente contra o futuro; sabemos de ciência certa que o nosso cérebro vai transformar-se em almofada confortável, que o nosso antidogmatismo é tão exclusivo como o funcionário, que não somos livres e gritamos liberdade.
- Sejamos dadaístas. Respostas racionais apenas prolongam o tempo das ligações. Vejam. Já tentei estar morto, em coma, foragido da polícia, no exterior. Nada adiantou. É preciso dinamitar a lógica humana e digital.
- — Eu falo com o senhor Pedro Gonzaga?
— Sim, aproveito para avisar que ele se tornou um rinoceronte.
Ou:
— Bom dia, o senhor é o proprietário da linha?
— Toda propriedade é Plutão.
- — Olá, o senhor conhece nosso novo plano (igual ao velho, só mais caro) de internet?
— O computador usurpou os sinais de fumaça. Carbono é sabedoria.
Não há protocolo para isso.
E por dias haverá serenidade nos campos do senhor.
- Tristan Tzara, também em espanhol. Nesta semana, em pleno carnaval lidei com meu primeiro telemarketing portenho. E descobri que o melhor Dadá se manifesta em portunhol.