- Assim topamos com o anúncio de uma sessão de autógrafo de Alan Pauls, na Fetiche Libros, na Villa Crespo, por acaso, sem alarde, depois de um almoço opíparo no Sarkis, um bodegón armênio de comida e preços tão bons que eu nem devia estar aqui a alertar os gansos.
- Estufados (meu fígado um fois gras já pronto), saímos a caminhar — por efeito digestivo — e deparamos com aquilo que para mim é a definição de uma metrópole cultural: não apenas a grande quantidade de eventos e atrações chamejantes, mas também o fato de muitos deles acontecerem em pequenas livrarias de bairro, como se dependesse da sorte dos passantes assisti-los.
- Tratava-se do lançamento de um pequeno livro de Pauls, Fallar otra vez, um ensaio sobre a impossibilidade de alcançar uma versão final na escrita, sobre os infinitos trabalhos de reescritura — corrigir, esconder os erros, revelar, ao fim, por meio das melhorias, os erros que tentamos mascarar.
- Mas eram três e meia de uma tarde tórrida e a sessão de autógrafos seria às sete. Nosso amigo e escritor Rafael Bassi, Tainá e eu resolvemos seguir em frente.
- Alberto Caeiro, com a sabedoria que encantou Álvaro de Campos, Ricardo Reis e o próprio Fernando Pessoa, bem disse sobre esta liberdade de não fazer o que se deve, em especial quando há um compromisso intelectual que pode conturbar o fluxo inconsútil do dia.
- Outra razoável definição da vida numa metrópole cultural seria esta: perder um evento importante supondo que amanhã haverá outra chance. Dizem que no Rio era assim. Mas eu não era no Rio.
- No dia seguinte, percorrendo o livrinho que acabei comprando (e agora espera o autógrafo), descubro uma excelente introdução, que me parece melhor do que o texto de fundo, assinada por Julián Herbert.
- Certa feita, numa outra vida, a Hard Working, banda em que eu tocava, abriu um show para a Fat Family. Estávamos com tanto sangue no olho no palco que no dia seguinte o jornal trazia uma nota dizendo que havíamos posto fogo na atração principal. É o perigoso combustível do vice.
- Na introdução de Herbert um tema fundamental da arte da escrita se desenha: qual o papel da correção na arte de compreender. Ou, o que corrigimos para tornar o texto mais fiel a nossas intenções, à nossa compreensão, que terminará revelada nas palavras voltadas aos outros
- No meu tempo de colégio, o ensino do português sofreu um golpe fatal, transformado em Comunicação e Expressão e, ainda que lá não tivesse a mais vaga ideia disso (sempre fui um nadador lento), ali estava o germe da incomunicabilidade, das perseguições, de muitos cancelamentos que ora enfrentamos. Porque, antes de mais nada, havia de ser Compreensão e Expressão. Sem compreender o que se lê não pode expressar nada com profundidade. Sem uma primeira etapa em que escrevemos para entender, não há sentido na expressão. Expressão do quê? Infelizmente, rápida é a fúria de quem treslê e entende o que já havia suposto entender.
- A incompreensão é a mais potente máquina de engendrar inimigos.
- A compreensão é frágil, instável e falha, mas se constrói sobre a possibilidade da mudança e da concórdia. De que haverá muitas revisões ainda a fazer.
Buenos Aires, Hora:Zero — 21
A compreensão é frágil, instável e falha, mas se constrói sobre a possibilidade da mudança e da concórdia
Pedro Gonzaga (1975) é tradutor, poeta e escritor. Doutor em literatura pela UFRGS, com diversas publicações, desenvolve há anos trabalhos com turmas de escrita criativa, voltadas para o público jovem e adulto. Foi cronista dos jornais Zero Hora e Estado de São Paulo. Natural de Porto Alegre, vive atualmente em Buenos Aires, de onde escreve a coluna Buenos Aires, Hora:Zero.
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