1. São dias de brutal inflação por aqui. Janeiro fechou com mais de 7% de aumento na capital federal, o que é mais do que a inflação anual de muitos países, o Brasil inclusive.
2. Recebendo em reais, no entanto, estamos, pelo câmbio, mais ou menos protegidos, como os locais que têm recursos suficientes para aplicações, em pesos ou em dólar, vivendo algo como as selvagens noites oitentistas do overnight.
3. Preparo um café, limpo a caixa de areia da gata, olho pela janela as cascatas de cabos de televisão e internet que os argentinos não se dão ao trabalho de esconder. Escrevo este item 3, que abandono para seguir numa tradução muito atrasada.
4. Traduzir é estar sempre dois livros atrasado.
5. A tevê quase muda ao fundo é suficientemente loquaz para chamar minha atenção às pessoas que reclamam do preço da carne. É curioso como é fácil nos convertermos numa dessas pessoas que dizem o que a matéria precisa. Parece um esquete mal executado, e todos suam, porque a realidade das cidades ao sul do mundo é um calor intolerável em fevereiro.
6. E depois algum tipo do governo, que busca acalmar os ânimos dizendo que a inflação é um fenômeno passageiro. Daria um bom e impermanente monge budista, não fosse o fato de que seus vencimentos e aplicações, por certo, garantem-lhe tal serenidade.
7. Espero pelo dia em que o desespero seja uma forma de sinceridade, a atingir chorosos porta-vozes, o mesmo desespero dos que não têm a coberta das correções monetárias.
8. Sei tola minha revolta na sala longe da rua. Já me acostumei a esse tipo de tolice bem-intencionada há duas décadas. Aspiro o morno consolo de ter alcançado uma boa frase na tradução, ciente de que as palavras de protesto, de empatia, que circulam como cédulas desvalorizadas, são um bálsamo que só envolve a quem as escreve.
9. Desço à rua. É temporada de cerejas, baratas, feito um luxo improvável. Do tamanho de ameixas, suculentas e doces.
10. Alguns talvez tenham as respostas. Eu estarei aqui, por enquanto, para dizer que estão erradas.
11. Reclamo com o verdureiro boliviano da carestia. Alguma coisa em nós do que vivemos, mesmo esquecida, ativa-se diante de um fenômeno repetido, não sem uma estranha inadequação, como falar numa língua estrangeira, desconforto que aos poucos vai se dissolvendo, até que entendamos tudo, até que seja tarde demais para não sabermos.