- Por vezes, penso que tudo depende das primeiras palavras que vão à página, do primeiro vínculo, digamos, que os três primeiros termos estabelecem (segura ou frouxamente), e que depois a mente segue em comboio — mesmo que nunca se apague de todo o fantasma do descarrilamento.
- É como apostar as fichas com a roleta girando.
- Procuro não pensar que antes da primeira palavra manchar a página, há milhares de combinações.
- É preciso jogar.
- Sorte que neste jogo as fichas se renovam ao pressionar da tecla delete. Se à falência do mundo real se seguisse a falência do mundo escrito, não haveria banco central que aguentasse.
- Escrever é uma forma rara de risco, contudo. Por mais que tenhamos a impressão de sustentar o fio do assunto do texto entre os dedos, a conversão de ideia em matéria verbal nunca se dá sem corrupções ou descobertas, sem inesperados erros e também milagrosos acertos.
- Ditados por caracteres. Uma palavra perturba o caos sereno da página em branco com a aparente ordem das letras em negro.
- E rompe com a ideia clássica no ocidente de que nada pode vir do nada. Do nada branco emergem essas pedras negras. Um nada não feito de ausência, mas como desordem criativa, como queriam os taoístas.
- E uma nova ordem que rapidamente se estabelece (assumamos a partir da terceira palavra na página), que reduz drasticamente as probabilidades eletivas das próximas. Ao cravar a expressão “por vezes”, no item 1 à abertura do texto, caíram-se-me uma série gigantesca de possibilidades.
- Logo eu disse “penso que”, e então um certo caminho passou a se impor, a se desenhar, rumo ao primeiro ponto final. Depois do qual outras aventuras se abriram, cada vez mais conformadas pelo tema, mais parte de uma trilha, pelas ideias que vão se coadunando, adquirindo uma lógica impositiva, até chegarmos aqui.
- Onde não mais podemos tudo, inclusive o delírio.
- Víboras de acetato macaxeiravam sibilos comburentes e acachapantes.
- Não podemos tudo.
- E talvez resida aí certa aflição que acomete muita gente ao ter diante de si a página em branco.
- Não é o branco que assusta, mas sim as possibilidades que ele em si encerra.
- A página é uma poça.
- A página é um lago de um prata cegante.
- Milhares de palavras estão ali, pedras submersas em suas profundezas claras. Insuladas. É somente na superfície do branco que elas se unem com alguma eficácia.
- Uma eficácia pesada.
- E não serão poucas as vezes em que preferiremos, após um excruciante combate, o retorno da planície líquida que jamais deveríamos ter tido a ousadia de perturbar.
Buenos Aires, Hora:Zero — 26
Por vezes, penso que tudo depende das primeiras palavras que vão à página, do primeiro vínculo, digamos, que os três primeiros termos
Pedro Gonzaga (1975) é tradutor, poeta e escritor. Doutor em literatura pela UFRGS, com diversas publicações, desenvolve há anos trabalhos com turmas de escrita criativa, voltadas para o público jovem e adulto. Foi cronista dos jornais Zero Hora e Estado de São Paulo. Natural de Porto Alegre, vive atualmente em Buenos Aires, de onde escreve a coluna Buenos Aires, Hora:Zero.
Gostou do texto? Comente e avalie aqui embaixo!
Para comentar, você precisa estar logado no Facebook